segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

"Si isti et istae, cur non ego?"

Dedico este texto aos que sonham, aos que têm a capacidade de admirar e, com isso, buscar humildemente modelos. Dedico ao meu pai. Ele sabe o porquê.
Uma pessoa olhou para mim e disse: "Poxa, vou estudar muito para um dia ser preparado, mas nunca conseguirei ser como você". Vi nos olhos dela uma humildade sincera, uma admiração pelos meus estudos. E por isso respondi com uma frase tantas vezes ditas e reditas pelo meu pai (um grande educador....), seja nas conversas com os seus filhos, seja nas salas de aula (quando lecionava de modo desprendido para distribuir o saber para toda uma geração de crianças junqueirenses), ou ainda em tantas oportunidades em que quis estimular as pessoas que pediam os seus conselhos: - "Se eles puderam, elas puderam, porque eu não posso?" ("Si isti et istae, cur non ego?").

Estímulos. Educar é estimular para o bem, para os bons valores, para a autoconfiança, tudo isso demarcando limites. Tudo o que somos é produto da educação e dos nossos esforços.

Quando eu era estudante de Dierito, o papai me apontou, certa feita, um grande advogado, reconhecido em Alagoas como um homem culto. E aí ele dizia: " Filho, fulano é um bichão!!!". Duas expressões serviam para o papai definir positivamente um homem: trabalhador e bichão. "Bichão", no discurso do papai, queria dizer grande, competente, temido, capaz, admirável. Tudo isso junto, resumido em uma única palavra. Olhei para o advogado indicado pelo meu pai e pensei: - "Quero ser igual a ele; quero ser tão bom quanto ele!". Olhei com admiração, não com inveja; olhei como quem olha um modelo a ser seguido. A inveja é a perversão da admiração, nascida da impotência e do orgulho ferido. Quantos ficaram pelo caminho porque não souberam admirar, alimentando em si não a virtude do exemplo mas o veneno do ciúme e da baixa autoestima?

Em 1990 fui presenteado pelos meus pais com uma viagem para Minas Gerais, para participar de uma conferência nacional da OAB. Estava no segundo ano do curso de Direito. Viajei com muito interesse. Na entrada do Minascentro, onde ocorria o evento, ficavam estandes de livrarias. Parei diante da Sérgio Fabris Editora, que estava editando o livro Teoria Geral das Normas, de Hans Kelsen. Um amigo chegou perto de mim, puxou-me pela manga da camisa e apontou-me um senhor de idade, parado ali pertinho de onde estávamos: "Adriano, olha o Calmon de Passos!". Eu era leitor do processualista baiano. Vindo da província, estar ao lado de autores de obras era como estar uma realidade paralela. Aliás, era como eu me sentia naquele momento, olhando para aquele homem de cabelo branco, terno preto, fisionomia fechada, absorto diante de obras que compulsava como um adolescente. Naquele momento, a única coisa que pensei foi que ele era de carne e osso. Olhei-o bem, com atenção. Calmon de Passos! Ah, que belo livro ele escreveu de comentários ao Código de Processo Civil! A minha cabeça maquinava: mas se ele pode, porque não eu? O que há neste homem de diferente de mim? A resposta veio como sempre vem nessas horas: o tempo dedicado ao estudo, os sacrifícios que fez, as horas gastas meditando!

Nos dias seguintes, pude assistir as palestras de Mauro Capelletti, Canotilho, Eros Grau, Celso Antônio Bandeira de Mello et caterva. Voltei daquela viagem vivamente marcado. Aquelas pessoas cujos pensamentos eram objeto das minhas atenções estiveram ali diante das minhas retinas. E eram gente como a gente, homens que chegaram lá porque se esforçaram, foram dedicados. Voltei para a província com o espírito inquieto, com uma sede abundante de estudo. Pensei comigo que um dia ainda estaria fazendo uma palestra no Minascentro. Voltei diferente do que fui. A frase de Santo Agostinho batendo nos seus ouvidos: "Eles puderam, elas puderam, porque eu não posso?".

Comecei a me dedicar com disciplina. E não foi fácil, por diversas razões. Muitas vezes me angustiava pensando que poderia estar errado, porque doava muito tempo ao estudo de textos densos, profundos, que exigiam muito da minha atenção. Não eram leituras fáceis aquelas que eu fazia, sem ter com quem conversar sobre elas, com quem debater a respeito das minhas inquietações intelectuais; sem ter, enfim, nenhum orientador. Era eu comigo mesmo e os livros.

Jogava bola sempre (normalmente, todos os dias da semana, às 17 horas, em um campinho vizinho da minha casa), namorava, saia com a minha turma (a turma do funil, como chamávamos), mas renunciei a muitas coisas. Os meus fins de semana eram de estudo pela manhã e à tarde. Folga, só à noite. No carnaval, quando fiquei em casa de praia, como a família da minha namorada, depois de todo mundo dormir, eu ia estudar. Estudava das 23 horas até às 04 horas da madrugada. Dormia até às 11 horas, levantava e ia para a praia, passava o dia brincando (sem beber) e à noite, depois de todo mundo dormir, enfrentava nova jornada de estudo. Lembro das longas leituras da obra de Ovídio Baptista da Silva sobre a coisa julgada.

A mesada que o papai me dava era toda investida em livros. Vivia sem dinheiro no bolso. A minha namorada da época muitas vezes pagava a conta da pizza... (Que cara de pau eu fui, não?!) Mas foi assim, investindo tudo o que ganhava em livros, que fiz uma boa biblioteca para pesquisar. Quando a mesada passou a ficar insuficiente para adquir todos os títulos que queria, e o papai já não aguentava pagar tanta conta de livros, passei a ensinar matemática particular. (Eu sempre fui péssimo em matemática, aliás). Alguns estudantes do ensino fundamental da 6ª, 7ª e 8ª séries da época passaram a estudar lá em casa, e eu ocupava as tardes de terça e quinta-feira com essas aulas de reforço. Continuava eu com os bolsos vazios, mas as minhas estantes estavam ficando ricas e sortidas.

Falei da solidão nos estudos. Esse foi o maior desafio: a ausência de um interlocutor. Tive que buscar sozinho os meus caminhos, sem que ninguém me apontasse autores, temas, livros. Fui aprendendo sozinho a separar o que era relevante do irrelevante, normalmente consultando a bibliografia daqueles autores com quem me identificava. Dou um exemplo: na livraria, folheei a 4ª edição do Curso de Direito Tributário de Paulo de Barros Carvalho. A densidade da obra me chamou a atenção, além da linha de sabor pontesiano. Estudando a obra, chamou-me a atenção as inúmeras citações de Lourival Vilanova, sobre lógica jurídica. Comprei As Estruturas Lógicas e o Sistema do Direito Positivo. Comecei a estudá-la também. Esse livro era terrível para não iniciados. Expressões que nunca havia visto, como functor, sincategorema, conectivo, lógica apofântica, lógica deôntica e outras tantas. Usei o método que aprendi estudando os Comentários de processo civil de Pontes de Miranda: ler, mesmo sem entender, um capítulo inteiro ou uma longa passagem, concentrando-se nas expressões que o autor dá importância, tentando entender o seu uso. Depois, ler novamente a mesma passagem ou capítulo, observando agora o que foi compreendido e tentando tirar novas lições. O que não foi entendido, deixar anotado para futura nova leitura. Seguir em frente, lendo novo capítulo ou nova longa passagem. Ler novamente esse segundo texto, agora tentando casar com o lido no primeiro. Nessas idas e vindas constantes, tentar conciliar as expressões, os conceitos, os usos do autor.

É um trabalho duro, cansativo e desgastante. Mas sempre usei, e ainda uso, esse método. Qual a vantagem dele? O estudo invade a intimidade do texto, expõe as suas contradições (quando existem) e deixa à mostra a nervura que lhe dá consistência e o mantém de pé.

Bem, volto ao início dessa longa narrativa. Ninguém pode ser bom em sua profissão sem dedicação e entrega. Podemos não ser o melhor, mas devemos ser o melhor do que podemos. Com esforço, com determinação, porque "Si isti et istae, cur non ego?". Por isso, termino esse post com um texto que gosto muito:

Seja o melhor que puder

Se você não puder ser um pinheiro no topo da colina
Seja um arbusto no vale mas seja o
melhor arbusto à margem do regato.
Seja um ramo, se não puder ser uma árvore.
Se não puder ser um ramo, seja um pouco de relva
e dê alegria a algum caminho.
Se não puder ser almíscar, seja então apenas uma tília,
Mas a tília mais viva do lago! Não podemos ser todos capitães,
temos de ser tripulação.

Há alguma coisa para todos nós aqui. Há grandes obras e outras menores a realizar e é a próxima tarefa que devemos empreender
Se você não puder ser uma estrada, seja apenas uma senda.

Se não puder ser sol, seja uma estrela, não é pelo tamanho que terá êxito ou fracasso, mas seja o melhor, do que quer que você seja!

Douglas Malloch


Um comentário:

  1. É impossível não conter o nó na garganta; saber que o que passamos hoje, outros também passaram. E depois de ler, emocionar-se, enxugar as lágrimas e relaxar; ver que se você pôde, eu também posso. Eu já lutei muito com meu pai. No entanto, do alto de sua truculência, ele sabia o que fazia; eu não. Só hoje sei o valor do homem que persegue seus objetivos, e consciente disso, tenta passar, nem que seja da maneira mais difícil, a educação para o seus filhos - o sentido da vida.

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