quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

Crônica da semana: Mingau de Barro

Era um domingo como outro qualquer. O sol estava a pino, deixando mais azul o céu sem nuvem de Junqueiro. Subimos na carroceria da caminhonete da padaria, usada normalmente para levar pão para ser vendido nos povoados. Estávamos todos felizes com o passeio: meus irmãos, Sérgio, Hélio, algumas outras crianças que a memória embotou nomes e rostos, como uma fotografia antiga. Fomos para o poço, naquele sítio que era chamado pomposamente de Fazenda Dois Irmãos, uma homenagem ao Helinho e ao Serginho. O avô materno preferia denominá-la de Fazenda Três Cachorros, aludindo às constantes brigas entre os netos e, ao mesmo tempo, homenageando a cachorrinha Laika, que alegrava o seu ocaso na senectude.

Poço era como chamávamos a pequena represa da água de um riacho, feita de cimento e tijolo, que formava uma espécie de piscina. Adorávamos esse passeio, acompanhado de uma boa farofada, galinha cozinhada e refresco de laranja. Crianças, pulávamos naquela água limpa que não tardava em ficar escura, com tanta gente removendo a areia do fundo. Pouco importava: escura ou não, brincávamos ali mesmo, num mingau barrento que dava gosto.

E a manhã toda era uma festa, com brincadeiras divertidas, músicas cantadas por todos (Roberto Carlos dominava o repertório, claro!), sem qualquer preocupação com o tempo ou afazeres. Éramos crianças felizes, brincando na realidade que tínhamos e com a qual nos sentíamos alegres, seguros, plenos. Para as crianças, penso eu, o que traz a felicidade é o ambiente sadio, pouco importando se com ótimos brinquedos ou não. Porque a criança brinca com a imaginação, com os sonhos, com as historinhas criadas pela própria fantasia.

O sítio era cercado por pequenas propriedades de agricultores simples, separado delas por uma cerca velha de madeira. Com as suas árvores frondosas, que davam gostosas sombras, ficávamos ali, pós "banho de barro", cantarolando, servindo-nos do almoço levado em marmiteiras, felizes como se estivéssemos em uma grande jornada. Eita, que lembrança boa me invadiu! Quase consigo sentir o cheiro do mato, o gosto da água barrenta que sem querer engolia em cada mergulho, a lama nos pés debaixo d'água, o cimento carrasquento em que nos encostávamos entre um mergulho e outro... Uma saudade da infância, dos dias inocentes, em que não tínhamos o peso das responsabilidades, apenas o infinito da imaginação como fronteira.

E voltávamos cantando ainda mais animados, Seu Zé Cruz e a Dona Hélia à frente, na boleia, conduzindo aquelas crianças todas, cuja felicidade não se podia medir. E logo avistávamos Junqueiro da nossa infância, aquela cidade que existe em minhas lembranças e na imensa saudade que sinto.

Se não nos lembramos de quem fomos, como podemos saber realmente quem somos? Se não amarmos a nossa história, os limites que tínhamos, as dificuldades vividas, como ser realmente felizes, seguros para a lida diária? Quando lembro de onde vim, do pouco que foi feito tanto, da imaginação que superava eventuais faltas, sinto-me tão alegre, podendo voltar os olhos molhados para aquela criança que fui e que vive em mim, sentindo uma profunda gratidão. Aquela criança de Junqueiro soube viver, soube brincar, soube ser criança. E por isso Junqueiro da minha infância, com todos os seus personagens, habita em meu coração.


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