sexta-feira, 13 de abril de 2012

Homem sem humanidade

Ele entrou na sala de audiências com algemas, acompanhado de dois policiais militares. Sentou-se na cadeira dos réus. A acusação era de que havia praticado latrocínio sem dar a vítima, um vigia noturno, chances de se defender. Matara para roubar um revólver e praticar crimes naquela região de Penedo. Promotor e defensor público em seus lugares, iniciei o interrogatório com a qualificação do acusado e as perguntas de praxe do Código de Processo Penal.

Naquela quadra, eu tinha 27 anos e era juiz de Direito em Penedo. O Fórum estava em reforma e estávamos em um casarão antigo, em condições precárias de trabalho. No chão, sem que nos desse conta dos riscos que corríamos, uma caixa de papelão cheia de armas (facas, foices, estiletes, revólveres enferrujados) de outros processos, custodiadas como provas.

Olhei para aquele homem em minha frente. Rosto moreno, com algumas marcas nas maçâs do rosto de pano branco, cabelos bem crespos aparados, relativamente magro, porém forte, com um perfil um pouco atlético. Vestido de camisa de algodão branca e bermuda até os joelhos, devia ele ter entre 20 a 25 anos.

À medida que fazia as perguntas protocolares, ele respondia de cabeça baixa. Se sabia sobre os fatos que lhe eram imputados, se era verdadeira a acusação que pesava sobre si, etc. Quando iniciei a detalhar os acontecimentos da noite do crime, que ele negava ter praticado - mesmo com todas as provas consistentemente demonstrando o contrário -, ele mudou o comportamento. Já não respondia de cabeça baixa. Levantou o rosto e, pela vez primeira, vi os seus olhos.

Era um olhar metálico, frio, sem alma. Não parecia haver vida humana ali, diante de mim, mas um animal enjaulado, sem culpas ou remorsos, sem sentimentos que lhe dessem qualquer traço de humanidade. Impressionou-me sobremodo aquele olhar. E ele cuidava em responder me olhando firmemente nos olhos, nitidamente buscando me intimidar para que as minhas perguntas terminassem logo ou para que eu não fosse detalhista.

Ordenei, de inopino, que ele respeitasse o juízo e baixasse a cabeça. Ele obedeceu. Continuei o interrogatório. Novamente, com olhar ainda mais frio, impenetrável, ele me encarou de modo ainda mais ameaçador. Mandei novamente que baixasse a cabeça. Ele obedeceu. Mas, uma terceira vez, fez o mesmo procedimento. Dessa vez, não determinei mais nada. Continuei a indagá-lo, fitando os seus olhos com firmeza, em um nítido jogo mental que ele estava entabulando: o jogo do amedontramento.

A audiência foi toda ela tensa. Sentia no ar um clima tenso, também do membro do Ministério Público e da Defensoria Pública. Os policiais, em pé, um de cada lado, conservavam a fera passiva, sentada, porém sempre com olhar metálico, amoral.

Terminada a oitiva das testemunhas de defesa e acusação, alegações finais orais, prolatei a sentença de procedência (latrocínio é crime afeto à competência do juiz togado e não do Tribunal do Júri). Apliquei-lhe a maior pena base possível, cumulada com todas as agravantes imagináveis e sem nenhuma atenuante. Pena máxima, sem progressão de regime. Quem quisesse que recorresse daquela sanção justa e exacerbada.

Não sei o que é feito desse bandido. Mas nunca esqueci o olhar daquele rapaz. Dei-me conta, ali, que o mal existe, sim, em estado puro, sem meia medida. Aquele homem não tinha humanidade; era um demônio em forma de gente, um psicopata sem emoção, alguém cujos sentimentos nobres da civilização não fazia morada.

Terminado o julgamento, foi ele levado ao presídio. Só então dei-me conta do risco que corrêramos e o porquê dele olhar, de quando em vez, para um ponto fixo atrás de mim: a caixa cheia de armas. Talvez calculasse ele o sucesso que poderia ter em alcançá-la, levando em conta a presença dos dois policiais armados e das algemas que não foram retiradas durante a audiência, dada a sua periculosidade.

Suei frio. Estávamos todos diante de um perigo real sem que nos déssemos conta da sua gravidade.

Nunca mais soube notícias desse bandido. Mas ele, por certo, é uma das lembranças que trago dos meus 3 anos de magistratura. Com ele, repito, aprendi que o mal existe como força bruta e que há homens sem haja neles marcas ou lembranças de humanidade.

Gente e bichos: somos águia, galinha e borboleta!

Um animal que sempre está associado ao combate é a águia. É uma ave predadora, cujo olhar intimida. Não é à-toa que virou um dos símbolos de força dos americanos. Mas a águia tem uma história interessante como espécie. Quem nos conta é Renato Bilher:


"A águia é a ave que possui maior longevidade da espécie, chega a viver setenta anos. Mas para chegar a essa idade, aos quarenta anos ela tem que to mar uma séria e difícil decisão. Aos quarenta ela está com as unhas compridas e flexíveis, não consegue mais agarrar suas presas das quais se alimenta. O bico alongado e pontiagudo se curva. Apontando contra o peito estão as asas, envelhecidas e pesadas em função da grossura das penas, e voar já é tão difícil!

Então a águia só tem duas alternativas: Morrer, ou enfrentar um dolorido processo de renovação que irá durar cento e cinquenta dias. Esse processo consiste em voar para o alto de uma montanha e se recolher em um ninho próximo a um paredão onde ela não necessite voar. Então, após encontrar esse lugar, a águia começa a bater com o bico em uma parede até conseguir arrancá-lo.
Após arrancá-lo, espera nascer um novo bico, com o qual vai depois arrancar suas unhas. Quando as novas unhas começam a nascer, ela passa a arrancar as velhas penas. E só cinco meses depois sai o formoso vôo de renovação e para viver então mais trinta anos.

Em nossa vida, muitas vezes, temos de nos resguardar por algum tempo e começar um processo de renovação. Para que continuemos a voar um voo de vitória, devemos nos desprender de lembranças, costumes, velhos hábitos que nos causam dor.
Somente livres do peso do passado, poderemos aproveitar o resultado valioso que a renovação sempre nos traz."


Aqui, como vimos, há uma outra característica da águia: a sua longevidade, porém dependente do sacrifício que esteja disposta a suportar. O sacrifício termina sendo, também para nós, um elemento de longevidade profissional ou pessoal. Ninguém vence na vida sem abdicar dos bicos e das unhas sem pegada; ninguém vence sem uma cota de dor, de perdas, de suor, lágrimas e muita determinação.


Ainda sobre a águia há uma interessante metáfora de James Aggrey, adaptada por Leonardo Boff, que nos ajuda também a refletir sobre o sentido da vida, a nossa vocação e os desafios assumidos.

 
"A ÁGUIA E A GALINHA: Uma metáfora da condição humana



Era uma vez um camponês que foi a floresta vizinha apanhar um pássaro para mantê-lo em sua casa. Conseguiu pegar um filhote de águia. Coloco-o no galinheiro junto com as galinhas. Comia milho e ração própria para galinhas. Embora a águia fosse o rei/rainha de todos os pássaros. Depois de cinco anos, este homem recebeu em sua casa a visita de um naturalista. Enquanto passeavam pelo jardim, disse o naturalista:

- Esse pássaro aí não é galinha. É uma águia.
- De fato – disse o camponês. É águia. Mas eu criei como galinha.
Ela não é mas uma águia. Transformou-se em galinha como as outras, apesar das asas de quase três metros de extensão.
- Não – retrucou o naturalista. Ela é e será sempre uma águia. Pois tem um coração de águia. Este coração a fará um dia voar às alturas.
- Não, não – insistiu o camponês. Ela virou galinha e jamais voará como águia.

Então decidiram fazer uma prova. O naturalista tomou a águia, ergueu-a bem alto e desafiando-a disse:

- Já que você de fato é uma águia, já que você pertence ao céu e não a terra, então abra suas asas e voe!

A águia pousou sobre o braço estendido do naturalista. Olhava distraidamente ao redor. Viu as galinhas lá embaixo, ciscando grãos. E pulou para junto delas. O camponês comentou:
- Eu lhe disse, ela virou uma simples galinha!
- Não! – tornou a insistir o naturalista. Ela é uma águia! E uma águia será sempre uma águia. Vamos experimentar novamente amanhã.

No dia seguinte, o naturalista subiu com a águia no teto da casa. Sussurrou-lhe:

- Águia, já que você é uma águia, abra as suas asas e voe!

Mas quando a águia viu lá embaixo as galinhas, ciscando o chão, pulou e foi para junto delas. O camponês sorriu e voltou à carga:

- Eu lhe havia dito, ela virou galinha!
- Não! – respondeu firmemente o naturalista. Ela é águia, possuirá sempre um coração de águia. Vamos experimentar ainda uma ultima vez. Amanhã a farei voar.

No dia seguinte, o naturalista e o camponês levantaram bem cedo. Pegaram a águia, levaram para fora da cidade, longe das casas dos homens, no alto de uma montanha. O sol nascente dourava os picos das montanhas. O naturalista ergueu a águia para o alto e ordenou-lhe:

- Águia, já que você é uma águia, já que você pertence ao céu e não à terra, abra suas asas e voe!

A águia olhou ao redor. Tremia como se experimentasse nova vida. Mas não voou. Então o naturalista segurou-a firmemente, bem na direção do sol, para que seus olhos pudessem encher-se da claridade solar e da vastidão do horizonte.

Nesse momento, ela abriu suas potentes asas, grasnou com o típico kau-kau das águias e ergue-se, soberana, sobre se mesma. E começou a voar, a voar para o alto, a voar cada vez mais para o alto. Voou... voou... até confundir-se com o azul do firmamento...

E Aggrey terminou conclamando:

- Irmãos e irmãs, meus compatriotas! Nós fomos criados à imagem e semelhança de Deus! Mas houve pessoas que nos fizeram pensar como galinhas. E muitos de nós ainda acham que somos efetivamente galinhas. Mas nós somos águias. Por isso, companheiros e companheiras, abramos as asas e voemos . Voemos como as águias. Jamais nos contentemos com os grãos que nos jogarem aos pés para ciscar".

Um animal que, ao contrário, está associado à delicadeza é a borboleta. Leio na Wikipédia que "o termo grego 'psyche' tinha dois significados originalmente. Um deles era alma e o outro, borboleta, que simbolizava o espírito imortal. Na mitologia grega, a personificação da alma é representada por uma mulher com asas de borboleta. Segundo as crenças gregas populares, quando alguém morria, o espírito saia do corpo com uma forma de borboleta".

A borboleta revela, penso eu, a fragilidade: uma beleza sem par, com cores vibrantes ou não, ela parece não ter defesas, mesmo quando ainda lagarta. Mesmo assim, nessa fase, como muito para guardar energia e se enclausurar. É como se fosse para dar um tempo, refletir, refazer-se, para só então se transformar, dando um salto para a liberdade. O casulo se rompe para abrir o mundo para a borboleta. Frágil, sim, mas com coragem suficiente para voar, para polinizar o mundo. A fragilidade e a beleza são suas características conaturais, mas ser frágil não implica ausência de atitude, de coragem de voar para cumprir o seu papel, para viver a sua vocação, para autorrealizar-se como ser-no-mundo, na temporalidade.

Atitude. Sem desculpas ou sem despedir-se das suas responsabilidades para afetá-la a outros. A borboleta não se esconde em sua fragilidade, porque - se o fizesse - não sairia do casulo, não deixaria nunca de ser pupa, escondida dentro da crisálida.

Na natureza, não importa se o animal é forte, como a águia, ou frágil, como a borboleta. O que realmente importa, no ciclo da vida, é se vive a sua vocação, é se faz a sua parte sem esperar que alguém faça por si, como uma eterna justificativa para não ser plenamente realizado no papel que a natureza lhe reservou.

Se temos um lado águia, voltados para os voos altos e os largos horizontes, temos que ter um lado galinha, para que não percamos de ter os pés no chão, a busca de terra firme aonde pousar. E, ainda, um lado borboleta, em que saibamos ter coragem de voar apesar dos nossos medos, das nossas fragilidades.

ÁGUIA = vontade de voar e sonhar alto;
GALINHA = pés nos chão, com a realidade diante dos olhos;
BORBOLETA = coragem para realizar os sonhos de voar, mesmo com as suas fragilidades.

Eis aí três facetas de uma mesma realidade complexa que somos nós. A atitude, os gestos, eles são nossos, quando queremos lutar pelo que vale a pena na realização da nossa vocação, dos nossos sonhos. Temos sempre que fazer a nossa parte!