quarta-feira, 17 de julho de 2013

Meu Pontes de Miranda

Havia terminado o curso de Direito. Fazendo o Exame de Ordem vi no mural um pequeno aviso: um advogado vendia os 60 volumes do "Tratado de direito privado" de Pontes de Miranda. Fui para casa ansioso. Sabia que os servidores públicos estavam numa fase difícil, com atrasos de pagamentos. Comprar uma coleção daquelas não seria fácil. No jantar, comentei com o papai sobre aquela possibilidade. Ele sabia o quanto lia Pontes de Miranda, sempre através de cópias ou empréstimos.

Era eu pontesiano, estudando com profundo interesse o pensamento genial do jurista alagoano, um dos maiores gênios que as letras jurídicas produziram. Eu, é certo, vinha me esforçando para comprar meus livros sem espremer tanto o orçamento lá de casa. Afinal, era frequentador assíduo da extinta livraria Caetés, onde comprava excessivamente livros, jurídicos ou não. Certo mês, o papai me chamou a atenção, porque fiz gastos elevados demais: "Filho, estude, compre seus livros, mas combine antes, porque vocês são quatro filhos. Assim, você desestrutura o orçamento de casa".

De fato, a minha avidez precisava ser ponderada. Para não deixar de comprar meus livros sem prejudicar os outros irmãos, encontrei uma solução: dar aulas de reforço a meninos e meninas da minha rua. E foi assim que virei professor de matemática (matéria que detestava), ensinando alunos em apuros, com baixo aproveitamento. Seis meses assim, que me renderam dinheiro para torrar em livros. E - que bom! - meus alunos passaram de ano com boas notas.

Bem, mas comprar a obra de Pontes de Miranda estava além das minhas possibilidades. Já gastava com livros a minha mesada, o dinheiro que ganhava dando aulas e o que mais os meus pais davam para pagar outros livros que eu comprava. Aliás, eu andava sem dinheiro. Tudo era para livros. A minha namorada, quando saíamos, era quem pagava a conta. Ela já sabia desse pequeno detalhe...

Diante da possibilidade de dispor daquela obra e da minha dedicação, o papai me olhou e disse que iria comigo ver o dono da coleção de Pontes de Miranda. Fiquei numa expectativa absurda. Quase não dormi. E fomos lá, juntos, no dia seguinte. A coleção era muito conservada; os livros, pensei eu, nunca foram abertos e lidos. O papai tentou negociar. O advogado, dono do "Tratado", mostrou-se irredutível. Precisava do dinheiro e não abria mão do valor. Conversa vai, conversa bem, ele fez a seguinte proposta ao papai: "O sr. leva o Tratado por esse valor e eu cedo, sem custos adicionais, esses outros livros", disse, apontando para uma outra obra de Pontes de Miranda, 17 tomos, os "Comentários ao Código de Processo Civil".

Fiquei doido! Querias muito também aquela obra. O papai me fitou. Viu o brilho nos meus olhos. Não me perguntou nada. Minha expressão dizia-lhe tudo. Ele virou-se para o advogado e concordou. Comprou os livros, realizando o meu sonho. Lembro-me, não sem emoção, daquele momento: levando os livros para o carro, colocando-os na mala, ao ponto de enchê-la: 60 tomos do "Tratado de direito privado" e mais 17 dos "Comentários ao Código de Processo Civil". E o advogado, querendo livrar-se dos livros da sua biblioteca, ainda me deu algumas outras boas obras, que me servem até hoje.

Foi um sonho. Arrumar aqueles livros em estantes compradas para recebê-los, passar a ler as obras podendo riscá-las, fazendo anotações. Uma alegria imensa. E essas obras ainda hoje são lidas, consultadas, fazendo parte da minha formação intelectual. Foi estudando Pontes que pude criar minha teoria da inelegibilidade.

Bem, aquele esforço do papai, naquele momento difícil, foi fundamental para a minha formação. Achavam, ele e a mamãe, que eu me excedia com tanta leitura e livros, mesmo tendo sido essa a educação que deram. Mas eu era demais da conta; virava noites lendo. Mesmo sem entender, apoiaram, porque a causa era justa. E foi por causa deles que pude me desenvolver intelectualmente. Lembrei dessa história hoje e quis compartilhar. Sou grato demais aos dois, que me deram tudo o que precisava para ser gente e ter valores.