segunda-feira, 11 de abril de 2011

Dostoiévski: "A beleza salvará o mundo"

"Cristo Morto" (1521), de Hans Holbein

Hoje é dia de Dostoiévski. Morreu há 129 anos. Uma das suas frases mais célebres é “A beleza salvará o mundo”. Ainda que tenha sentido mesmo isolada, porque desejamos que a beleza conquiste mais espaço, tempo e importância (quem livremente opta pelo feio?), convém lê-la no contexto.

O conterrâneo Alexandre Soljenitsyne diz que durante muito tempo não compreendeu a frase, para a seguir interpretá-la neste sentido: o mundo há-de ficar convencido pela beleza (belos discursos, bela literatura, enfim, arte) de que a Beleza, a Verdade e do Bem estão unidos como se fossem uma árvores de três ramos. Cortar um deles é matar a árvore. A frase é “uma profecia”, diz o Nobel da Literatura de 1970. O texto, em inglês, pode ser lido aqui.

João Paulo II também citou a frase. Na “Carta aos Artistas”, de 1999, diz que beleza, assombro e entusiasmo andam juntos. “Já no limiar do terceiro milénio, desejo a todos vós, artistas caríssimos, que sejais abençoados, com particular intensidade, por essas inspirações criativas. A beleza, que transmitireis às gerações futuras, seja tal que avive nelas o assombro. Diante da sacralidade da vida e do ser humano, diante das maravilhas do universo, o assombro é a única atitude condigna. De tal assombro poderá brotar aquele entusiasmo (…) a que me referi ao início. Os homens de hoje e de amanhã têm necessidade deste entusiasmo, para enfrentar e vencer os desafios cruciais que se prefiguram no horizonte. Com tal entusiasmo, a humanidade poderá, depois de cada extravio, levantar-se de novo e retomar o seu caminho. Precisamente neste sentido foi dito, com profunda intuição, que «a beleza salvará o mundo» (n.º 25 da “Carta aos artistas”, aqui em português).

A palavra “entusiasmo” é etimologicamente interessante neste contexto, porque significa “levar Deus dentro de si mesmo”. Mas era isso que Dostoiévski queria dizer?

A afirmação surge no cap. 5 de terceira parte de “O Idiota”. Diz Ippolit, entre um grupo de amigos, numa noitada, depois de ter passado uns minutos pelo sono:

“É verdade que o príncipe disse, uma vez, que a «beleza» salvaria o mundo? Meus senhores – gritou bem alto –, o príncipe afirma que a beleza salvará o mundo! E eu afirmo que quem tem ideias tão jocosas está apaixonado. Meus senhores, o príncipe está apaixonado; mal ele entrou tive a certeza disso. Não core, príncipe, senão ainda tenho pena de si. Que beleza salvará o mundo? Foi o Kólia quem mo contou… É um cristão zeloso? O Kólia diz que o príncipe se qualifica a si mesmo de cristão…” (pág. 396 de “O Idiota”, Editorial Presença, tradução de Nina Guerra e Filipe Guerra).

O príncipe a que se refere Ippolit é Lev Nikoláevitch Míchkin, protagonista de “O Idiota”, o próprio idiota, o próprio Dostoiévski.

Umas páginas à frente, na 421, Míchkin conta:

“Quando me levantei para fechar a porta à chave depois de ele [Kólia] sair, lembrei-me subitamente de um quadro que vira nesse dia em casa de Rogójin, numa das mais sombrias salas da sua sombria casa, por cima da porta. Ele próprio no mostrou à passagem. Acho que fiquei parado diante do quadro uns cinco minutos, não menos. A pintura não era grande coisa em termos artísticos, mas mergulhou-me numa estranha inquietação.

Nesse quadro está pintado um Cristo que acabaram de tirar da cruz. Parece que os pintores têm o hábito de representar Cristo, tanto crucificado como tirado da cruz, sempre com um toque de beleza no rosto; mesmo nos momentos de sofrimento mais terrível, acham que devem conservar-lhe a beleza. Ora, no quadro de Rogójin não há o mínimo de beleza; aquilo é, no sentido mais pleno, o cadáver de uma pessoa que sofreu infinitamente, ainda antes da crucificação, feridas, torturas, espancamentos por parte dos guardas e do povo, quando carregava com a cruz e caiu debaixo dela, e, finalmente, o sofrimento atroz quando esteve pregado na cruz durante seis horas (de acordo com os meus cálculos, pelo menos). Também é verdade que há ainda muita vida, muito calor, no rosto de um homem que acabaram de tirar da cruz: o cadáver ainda não teve tempo de tornar-se rígido, no rosto do morto ainda transparece o sofrimento, como que sentido no próprio instante (este pormenor foi muito bem apanhado pelo artista); mesmo assim, aquele rosto não foi poupado; nele só há a natureza, e ponto, é mesmo assim o cadáver de uma pessoa, seja ela quem for, depois de semelhantes tormentos. Sei que a Igreja cristã estabeleceu, ainda nos primeiros séculos, que o Cristo não sofreu metaforicamente mas na lei da natureza, completa e absolutamente. No quadro, esse rosto está terrivelmente desfigurado por golpes, tumefacções, nódoas negras assustadoras, inchadas e sangrentas, tem os olhos abertos, as pupilas entortadas; o branco dos olhos, grande e aberto, tem um brilho lívido, vítreo. É estranho que, quando olhamos para este cadáver de homem torturado, surge uma pergunta especial e curiosa: se um cadáver assim (e ele devia sem dúvida ser tal e qual como este) foi visto por todos os seus discípulos, pelos principais futuros apóstolos dele, pelas mulheres que tinham fé nele e o adoravam, como foi possível que acreditassem, á vista deste cadáver, que este mártir ia ressuscitar? (…) Com este quadro parece estar expressa precisamente a noção de uma força obscura, descarada e eternamente sem sentido a que tudo fica submisso, e esta noção transmite-se-nos involuntariamente. As pessoas que rodeavam o morto, nenhuma das quais está presente no quadro, deviam sentir uma terrível amargura e perturbação naquela noite que esmagou de vez todas as suas esperanças e, talvez, todas as suas crenças” (fim de citação).

É esta não-beleza que salvará o mundo. Melhor, os cristãos sabem que foi esta beleza que salvou o mundo.

O quadro que Dostoiévski / Míchkin viu foi o "Cristo Morto" (1521), de Hans Holbein, que está em Basileia. Dostoiévski viu o original durante viagem que fez à Suíça. Clique na imagem para aumentar.


Texto de
, originalmente publicado aqui.
A imagem que impressionou
Dostoiévski, em tamanho grande, pode ser vista aqui.

domingo, 10 de abril de 2011

F-1: Massa vai bem; a Ferrari, mal.

No Grande Prêmio da Malásia de F-1, Felipe Massa largou bem, superou novamente o seu companheiro de equipe, e vinha fazendo uma prova consistente, dentro das possibilidades da Ferrari nesse início de temporada, quando, mais uma vez!, a sua equipe erra nos boxes, na troca de pneus, e prejudica a corrida do brasileiro.

É certo que os carros da Ferrari estão bem abaixo dos carros da RedBull e dos da McLaren. Nas duas primeiras corridas do ano, tivemos um Sebastian Vettel soberbo, sem erros e manobras de afogadilho, juntando as qualidades do seu carro com o talento pessoal agora mais maduro e consistente. Lewis Hamilton continua sendo um excepcional piloto, com apetite, mostrando que é o principal desafiante do campeão alemão. Janson Button tem um estilo de pilotagem mais limpo, menos circense, mas muito eficiente, de modo que vai mordendo pelas beiradas e não pode ser desprezado.

Mas os da Ferrari sofrem com os mesmos dois problemas dos últimos anos: erros da equipe e carros menos competitivos que os rivais. O talento de Alonso faz diminuir, na pista, essa diferença, mas, no resultado final, aparece sempre a verdade: a Ferrari está concorrendo, neste instante, com Renault e Mercedes para ver qual é a terceira força da F-1 atual. Convenhamos: é muito pouco para uma equipe que pretende lutar pelo título.

Massa fez hoje a sua melhor corrida desde o acidente que o vitimou faz dois anos. Largou bem, foi consistente no início da corrida mantendo as posições obtidas e ultrapassando Petrov, até que foi prejudicado nas trocas de pneus, perdendo importantes segundos. Aí teve a sua corrida prejudicada, ficando sempre no pilotão intermediário. Ter terminado em sexto, um posição à frente de Alonso, se não dá para comemorar, serve ao menos de consolo, menos pelo que ganhou e mais pelo que o seu companheiro deixou de fazer.

sábado, 9 de abril de 2011

Haikai (III)

As palavras haviam de mim todas fugido.

Busquei-as, debalde, em meio à angustiante tempestade.

E as orações ficaram todas sem sentido.

Haikai (II)

A saudade maltrata e desatina o amor,

que esquecido em um canto lúgubre e perdido,

apenas busca de todos esconder a sua dor.


Haikai (I)

Nunca morre o amor.

Morrem os seus sonhos,

Assim, como o sol a se por.

O Massacre de Realengo

Foi essa semana, no Colégio Tasso da Silveira, em Realengo, no Rio de Janeiro, Wellington Menezes de Oliveira, 23, matou crianças inocentes e, baleado, matou-se. Deixou uma carta, na qual não explica o seu gesto capital, apenas manifestando-se virgem e orientando como proceder com a sua sepultura, além da sua última vontade com relação a um bem imóvel.

Especialistas, autoridades, pessoas do povo, todos perplexos, buscam ou dão explicações sobre o que é simplesmente inexplicável. Se ele não disse em vida as razões pelas quais buscou a morte de inocentes crianças indefesas, tampouco deixou motivos para dar cabo da sua jovem vida.

O que de concreto podemos extrair desse massacre? Quais as lições que ele suscita? Honestamente, nenhuma! Estamos diante do impoderável, de uma mente doente, de desrazões, de um trágico acontecimento sem o mínimo sentido ou significação. Não tinha Wellington uma causa, uma bandeira, uma justificativa. Queria morrer. Mas queria ir embora deixando a sua marca, saindo do palco da vida com estardalhaço.

Talvez algum cretino queira atribuir à religião essa loucura. O fundamentalismo, seja qual for, é sempre uma praga, seja religioso, moral, político, ideológico. Mas nem as possíveis (des)razões religiosas foram por ele expostas.

Na verdade, estamos diante daquilo que os ocidentais, desde o iluminismo, detestam: o mistério. Sim, aquela dimensão humana cuja razão não tem como se ocupar e dar respostas sensatas. O mistério do mal, que fratura a nossa humanidade e torna a razão pequena demais para dar conta.

Bem, estamos todos perplexos. Impactados. E certos que, sim, vivemos um dia de cão, de uma fúria humana incontrolável e inexplicável. O mal existe, sim. E nós o encontramos hoje, sem piedade sequer da inocência.

Música do fim de semana: Luan Santana

A música do final de semana é desse menino-prodígio, Luan Santana, que faz sucesso em cima de sucesso, com o seu talento musical. A música é bonita e boa de ouvir. Deixem de preconceito contra o romântico sertanejo, que tem muita coisa boa.


As dores do mundo

Desde que a razão tentou destruir a cidadela da fé, o Mistério foi enviado ao degredo. A razão pode explicar tudo, desvelando o real, abrindo as suas vísceras e nos dando respostas definitivas. A ciência teria esse poder explicativo, essa capacidade de dar respostas a todas as nossas questões mais profundas.

Essa a razão pela qual, diante de uma tragédia como aquela da Escola de Realengo, em que um maluco ceifou vidas a esmo, sem uma razão, sem um motivo, sem uma justificativa, buscamos tantas respostas, um tanto atarantados.

Certo, podemos dizer que o rapaz era um doidivanas, um psicopata, ou que tudo se deveria ao comércio permitido de armas, ou mesmo que a culpa é da segurança pública... São afirmações sem sentido, decorrentes da estupefação. Queremos falar, falar e falar, com a angústia diante do imponderável, da loucura em seu estado mais bruto e destrutivo.

Mas simplesmente não há respostas possíveis. Podemos dar nome à doença do assassino, podemos falar em bullying, em frustrações profundas que o levaram ao ato insano... Mas nada disso explica ou, o que é mais dramático, nada disso justifica. Porque, sim, é disso que se trata: não buscamos explicações, mas justificativas para uma atrocidade dessa magnitude e irracionalidade.

E a razão há de ceder lugar ao Mistério. O homem, em sua nervura, em sua estrutura, tem dimensões insondáveis, que a razão não poderá nunca alcançar. A sua abertura para o infinito, a sua sede eternidade, a sua espiritualidade, enfim, está além das possibilidades de compreensão. Podemos ter até uma visão dessa rica realidade, mas é uma visada imperfeita, limitada, indireta.

Há em nós abismos profundos e píncaros inalcançáveis. Somos a abertura para Deus, para a eternidade, para o infinito, e a vertigem do desespero, da perda de sentido, da loucura destrutiva.

É aí onde faz sentido para a civilização humana a pergunta que nos inquieta tanto: Deus existe? E essa pergunta, por si só, já traz embutida uma resposta: pode até não existir, mas o problema “Deus” existe em nós, inclusive para o ateu mais militante.
Não problematizamos se “duendes”, “vampiros” ou “fadas” existem. São signos sem referência a objetos do mundo, mas ideias desde sempre irreais. Quando pensamos em um “unicórnio”, vemos um ser metade cavalo e metade homem, que sabidamente é fruto de uma criação humana. Nada obstante, ao simplesmente problematizarmos a existência de Deus, já tomamos a sério a questão. Há um referente para o signo; referente que não se confunde com um objeto concreto, mas que ultrapassa uma ideia ou conceito. Para os cristãos, inclusive, Deus é pessoa!

O Mistério é uma dimensão que não pode ser descartada em nossas vidas, como fuga ao irracionalismo ou ao exotérico, mas como percepção de que somos mais, muito mais, do que uma realidade psicofísica. Somos espíritos, temos uma dimensão que ultrapassa a própria linguagem e a experiência sensível, mas que podemos apreender pela nossa estrutura natural.

O massacre de Realengo nos remete para a brutalidade do inexplicável, para o mistério da nossa existência e, sobretudo, para o Mistério do sentido. Sim, porque o que nos faz diferentes dos outros animais, o que torna possível a própria cultura humana, é a nossa incessante busca pelo sentido da vida e pelo sentido da nossa história.

Termino essas palavras mal escritas, essas ideias dispersas, apenas para constatar, mais uma vez, a perplexidade diante do absurdo e afirmar uma certeza: sem Deus, meus caros, a história humana é simplesmente sem nenhum sentido. As dores do mundo, as nossas mais profundas dores, só encontram sentido naquela cena patética: um homem estiolado, destruido no madeiro da cruz. É esse homem que nos chama e nos interpela para uma certeza: a morte há de ser vencida. A boa nova, o Evangelho, é justamente isso: a promessa da ressurreição!

domingo, 3 de abril de 2011

Música do fim de semana: Ana Carolina e Chiara Civello

As músicas, como a poesia, devem também embalar a alma, o coração, expressando sentimentos, fazendo sonhar, saindo de si mesmo para o mundo lúdico do amor, das paixões, dos sonhos ou daqueles sentimentos demolidores como a saudade, a melancolia, o querer... Tem músicas que fazem o coração doer pelo objeto amado. A música, por vezes, aproxima a mulher amada quando há qualquer distância, faz com que o coração palpite nas batidas da canção o seu nome.


Ana Carolina e Chiara Civello compuseram e cantam "Resta", essa deliciosa música para um bom fim de semana.

A religião é matéria apenas privada?

Nos grandes temas públicos da atualidade há sempre questões morais envolvidas. Seja no campo da engenharia genética, na medicina, no direito, na economia, estamos sempre em face de relevantes questões de natureza ética e moral, desafiando cada vez mais debates em razão de vivermos em um mundo difuso, policêntrico e sem monopólio da última palavra. É dizer, um mundo desmanchado no ar, como profetizara Marx.

Quando se discute sobre aborto, eutanásia, homossexualidade, utilização de embriões, celulas-tronco, há sempre grandes discussões, mais da vez apaixonadas, em que diferentes grupos de pressão digladiam-se no manejo de argumentos com fundamentação as mais diversas, que vão desde um ceticismos ético extremado até um fundamentalismo religioso, duas pontas extremas que se tocam no mesmo irracionalismo.

Nesses debates, alguns deles submetidos a apreciação do Poder Judiciário, não raro busca-se eliminar, desde o início, qualquer possibilidade de uso de argumentos religiosos, a um duplo fundamento: (a) religião seria matéria privada, de foro íntimo; e (b) as proposições religiosas seriam inverificáveis, partindo de uma verdade revelada insuscetível de ser comprovada. Razão pela qual, tido por irracional, o discurso religioso passa a sofrer uma discriminação preconceituosa, havendo constante tentativa de expurgá-lo do debate público.

Na verdade, a nossa sociedade dispersa e confusa rejeita, de antemão, a racionalidade de qualquer discurso ético e, desse modo, expurga desde já qualquer validade racional do discurso religioso. Isso se percebe em qualquer debate público, quando o interlocutor deseja constranger as razões do outro, saca logo o que seria um forte ataque final: "Ah, mas essa fala sua tem conteúdo religioso...".

Há pouco, travei interessante debate no Twitter sobre o chamado "Kit de Combate à Homofobia", um programa equivocado do Ministério da Educação, que pretende combater a homofobia estimulando nas escolas públicas a cultura da homossexualidade, com filmes de péssimo gosto e moral duvidosa. Filmes que, em última análise, dizem que é o máximo ser gay e questionam - vejam que estupidez - até mesmo a separação de banheiros entre masculino e feminino...

O vídeo abaixo reproduz parte da sessão da Comissão de Legislação Participativa da Câmara, ocorrida no dia 23 de novembro de 2010, em que André Lázaro, então secretário de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade do MEC, fala sobre o material "didático", enfatizando que a discussão relevante mesmo na sua confecção foi sobre “Até onde entrava a língua” num beijo lésbico.


No dabate no Twitter, acusavam-me - parece o melhor termo - de fazer uma crítica a partir de um discurso religioso, que seria - penso eu - irracional, conservador, ultrapassado e opressor. Sendo a religião assunto privado, não poderíamos, sob pena de invalidar de antemão os argumentos, falar em opções religiosas ou mesmo morais.

E qual o meio próprio para afastar o cognitivismo e racionalidade do discurso moral e religioso? A fuga para o naturalismo, de um lado, e para o relativismo moral, de outro lado. O naturalismo aparece muito forte ao se afirmar que a homossexualidade é legítima porque é natural; o relativismo moral, ao se afirmar que tudo que não prejudique o outro pode ser feito (um argumento muito interessante, sobre o ponto, pode ser resumido assim: "tenho o mesmo direito de debater sobre a homossexualidade que teria em debater sobre a reforma do banheiro do meu vizinho").

O problema do argumento naturalista é posto quando confrontamos outras situações que desafiam a sua absurdidade, como a pedofilia, o incesto, o homicídio... Homens matam, logo é uma conduta natural e não pode ser discutida. Pai adulto pode desejar manter relações sexuais com a sua filha adulta, por ser algo natural, não seria possível de análise moral. Os tabus universais das civilizações ruiriam todos mediante o recurso retórico ao naturalismo.

De outra sorte, mais refinada teoricamente, seria a objeção do não-cognitivismo ético, que diz serem as proposições éticas inverificáveis. Hirlary Putnam, filósofo americano, é crítico contundente dessa forma niilista de pensar, sustentando que os debates éticos "são desacordos racionais que requerem uma decisão que chegue até onde se encontram as melhores razões" ("Valores e normas", in: HABERMAS, Jürgen e PUTNAM, Hilary. Normas e valores, Madri: Trotta, 2008, p.61). Ou seja, podemos sustentar, sim, um debate racional consistente em questões éticas e religiosas, que estão na nervura do mundo da vida e são responsáveis por padrões de comportamento aceitáveis no meio social.

Ser contrário ao incentivo da cultura homossexual não é ser homofóbico, como ser contrário ao sionismo não é ser antissemita. É preciso que o discurso da intolerância não seja incentivado nem contra nem pró determinadas formas de pensar. E o Kit Contra a Homofobia, feito pelo MEC, não apenas não contribui com os fins a que visa, como ainda causa espécie até mesmo a quem, não sendo homossexual, tem simpatia pela causa gay. Ter simpatia pelo tratamento acolhedor não é o mesmo que estimular, em pessoas em formação, a cultura gay.

Neste passo, fico com o discurso religioso e moral, que apela ao diálogo sincero, ao acolhimento, mas sem militância e políticas oficiais de estímulo às crianças e adolescentes, inclusive mostrando, em vídeos, beijos (com ou sem língua) entre casais gays. E, sim, a religião tem todo o direito de se manifestar sobre o tema, porque ela é sim essencial como modeladora da vida social e do debate público.