Ele entrou na sala de audiências com algemas, acompanhado de dois
policiais militares. Sentou-se na cadeira dos réus. A acusação era de
que havia praticado latrocínio sem dar a vítima, um vigia noturno,
chances de se defender. Matara para roubar um revólver e praticar crimes
naquela região de Penedo. Promotor e defensor público em seus lugares,
iniciei o interrogatório com a qualificação do acusado e as perguntas de praxe do Código de Processo Penal.
Naquela quadra, eu tinha 27 anos e era juiz de Direito em Penedo. O Fórum estava em reforma e estávamos em um casarão antigo, em condições precárias de trabalho. No chão, sem que nos desse conta dos riscos que corríamos, uma caixa de papelão cheia de armas (facas, foices, estiletes, revólveres enferrujados) de outros processos, custodiadas como provas.
Olhei para aquele homem em minha frente. Rosto moreno, com algumas marcas nas maçâs do rosto de pano branco, cabelos bem crespos aparados, relativamente magro, porém forte, com um perfil um pouco atlético. Vestido de camisa de algodão branca e bermuda até os joelhos, devia ele ter entre 20 a 25 anos.
À medida que fazia as perguntas protocolares, ele respondia de cabeça baixa. Se sabia sobre os fatos que lhe eram imputados, se era verdadeira a acusação que pesava sobre si, etc. Quando iniciei a detalhar os acontecimentos da noite do crime, que ele negava ter praticado - mesmo com todas as provas consistentemente demonstrando o contrário -, ele mudou o comportamento. Já não respondia de cabeça baixa. Levantou o rosto e, pela vez primeira, vi os seus olhos.
Era um olhar metálico, frio, sem alma. Não parecia haver vida humana ali, diante de mim, mas um animal enjaulado, sem culpas ou remorsos, sem sentimentos que lhe dessem qualquer traço de humanidade. Impressionou-me sobremodo aquele olhar. E ele cuidava em responder me olhando firmemente nos olhos, nitidamente buscando me intimidar para que as minhas perguntas terminassem logo ou para que eu não fosse detalhista.
Ordenei, de inopino, que ele respeitasse o juízo e baixasse a cabeça. Ele obedeceu. Continuei o interrogatório. Novamente, com olhar ainda mais frio, impenetrável, ele me encarou de modo ainda mais ameaçador. Mandei novamente que baixasse a cabeça. Ele obedeceu. Mas, uma terceira vez, fez o mesmo procedimento. Dessa vez, não determinei mais nada. Continuei a indagá-lo, fitando os seus olhos com firmeza, em um nítido jogo mental que ele estava entabulando: o jogo do amedontramento.
A audiência foi toda ela tensa. Sentia no ar um clima tenso, também do membro do Ministério Público e da Defensoria Pública. Os policiais, em pé, um de cada lado, conservavam a fera passiva, sentada, porém sempre com olhar metálico, amoral.
Terminada a oitiva das testemunhas de defesa e acusação, alegações finais orais, prolatei a sentença de procedência (latrocínio é crime afeto à competência do juiz togado e não do Tribunal do Júri). Apliquei-lhe a maior pena base possível, cumulada com todas as agravantes imagináveis e sem nenhuma atenuante. Pena máxima, sem progressão de regime. Quem quisesse que recorresse daquela sanção justa e exacerbada.
Não sei o que é feito desse bandido. Mas nunca esqueci o olhar daquele rapaz. Dei-me conta, ali, que o mal existe, sim, em estado puro, sem meia medida. Aquele homem não tinha humanidade; era um demônio em forma de gente, um psicopata sem emoção, alguém cujos sentimentos nobres da civilização não fazia morada.
Terminado o julgamento, foi ele levado ao presídio. Só então dei-me conta do risco que corrêramos e o porquê dele olhar, de quando em vez, para um ponto fixo atrás de mim: a caixa cheia de armas. Talvez calculasse ele o sucesso que poderia ter em alcançá-la, levando em conta a presença dos dois policiais armados e das algemas que não foram retiradas durante a audiência, dada a sua periculosidade.
Suei frio. Estávamos todos diante de um perigo real sem que nos déssemos conta da sua gravidade.
Nunca mais soube notícias desse bandido. Mas ele, por certo, é uma das lembranças que trago dos meus 3 anos de magistratura. Com ele, repito, aprendi que o mal existe como força bruta e que há homens sem haja neles marcas ou lembranças de humanidade.
Naquela quadra, eu tinha 27 anos e era juiz de Direito em Penedo. O Fórum estava em reforma e estávamos em um casarão antigo, em condições precárias de trabalho. No chão, sem que nos desse conta dos riscos que corríamos, uma caixa de papelão cheia de armas (facas, foices, estiletes, revólveres enferrujados) de outros processos, custodiadas como provas.
Olhei para aquele homem em minha frente. Rosto moreno, com algumas marcas nas maçâs do rosto de pano branco, cabelos bem crespos aparados, relativamente magro, porém forte, com um perfil um pouco atlético. Vestido de camisa de algodão branca e bermuda até os joelhos, devia ele ter entre 20 a 25 anos.
À medida que fazia as perguntas protocolares, ele respondia de cabeça baixa. Se sabia sobre os fatos que lhe eram imputados, se era verdadeira a acusação que pesava sobre si, etc. Quando iniciei a detalhar os acontecimentos da noite do crime, que ele negava ter praticado - mesmo com todas as provas consistentemente demonstrando o contrário -, ele mudou o comportamento. Já não respondia de cabeça baixa. Levantou o rosto e, pela vez primeira, vi os seus olhos.
Era um olhar metálico, frio, sem alma. Não parecia haver vida humana ali, diante de mim, mas um animal enjaulado, sem culpas ou remorsos, sem sentimentos que lhe dessem qualquer traço de humanidade. Impressionou-me sobremodo aquele olhar. E ele cuidava em responder me olhando firmemente nos olhos, nitidamente buscando me intimidar para que as minhas perguntas terminassem logo ou para que eu não fosse detalhista.
Ordenei, de inopino, que ele respeitasse o juízo e baixasse a cabeça. Ele obedeceu. Continuei o interrogatório. Novamente, com olhar ainda mais frio, impenetrável, ele me encarou de modo ainda mais ameaçador. Mandei novamente que baixasse a cabeça. Ele obedeceu. Mas, uma terceira vez, fez o mesmo procedimento. Dessa vez, não determinei mais nada. Continuei a indagá-lo, fitando os seus olhos com firmeza, em um nítido jogo mental que ele estava entabulando: o jogo do amedontramento.
A audiência foi toda ela tensa. Sentia no ar um clima tenso, também do membro do Ministério Público e da Defensoria Pública. Os policiais, em pé, um de cada lado, conservavam a fera passiva, sentada, porém sempre com olhar metálico, amoral.
Terminada a oitiva das testemunhas de defesa e acusação, alegações finais orais, prolatei a sentença de procedência (latrocínio é crime afeto à competência do juiz togado e não do Tribunal do Júri). Apliquei-lhe a maior pena base possível, cumulada com todas as agravantes imagináveis e sem nenhuma atenuante. Pena máxima, sem progressão de regime. Quem quisesse que recorresse daquela sanção justa e exacerbada.
Não sei o que é feito desse bandido. Mas nunca esqueci o olhar daquele rapaz. Dei-me conta, ali, que o mal existe, sim, em estado puro, sem meia medida. Aquele homem não tinha humanidade; era um demônio em forma de gente, um psicopata sem emoção, alguém cujos sentimentos nobres da civilização não fazia morada.
Terminado o julgamento, foi ele levado ao presídio. Só então dei-me conta do risco que corrêramos e o porquê dele olhar, de quando em vez, para um ponto fixo atrás de mim: a caixa cheia de armas. Talvez calculasse ele o sucesso que poderia ter em alcançá-la, levando em conta a presença dos dois policiais armados e das algemas que não foram retiradas durante a audiência, dada a sua periculosidade.
Suei frio. Estávamos todos diante de um perigo real sem que nos déssemos conta da sua gravidade.
Nunca mais soube notícias desse bandido. Mas ele, por certo, é uma das lembranças que trago dos meus 3 anos de magistratura. Com ele, repito, aprendi que o mal existe como força bruta e que há homens sem haja neles marcas ou lembranças de humanidade.
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