sábado, 24 de dezembro de 2011

Fé, linguagem, amor e cultura: do ser ao nada

Um dos grandes movimentos da filosofia ocidental decorreu da descoberta do papel central da linguagem não apenas como instrumento para a comunicação, mas sobretudo como sendo ela a própria realidade. Heidegger cunhou frase lapidar: "Ser que pode ser compreendido é linguagem".

A linguagem, portanto, deixaria de ser o "medium" para ser, ela própria, a realidade. O que vem pela linguagem existe; sobre o que não se pode falar, ou não existe ou é o inefável, como sustentara o primeiro Wittgenstein, já no fecho do "Tratactus logico-philosophicus".

Uma das dimensões fundamentais da linguagem é pragmática. Enquanto a semântica se atém à relação entre o signo e a coisa por ele designado e a sintaxe se prende à relação dos signos consigo mesmo na estrutura expressional, cuida a pragmática da relação dialógica dos atos de fala. A linguagem é uma realidade intersubjetiva, comunitária. Não há linguagem privada; o falar e o pensar ocorre sempre em um processo dialógico, através de uma gramática comum à comunidade do discurso.

Todas as principais experiências humanas reclamam uma expressão em linguagem: o amor, a fé, o desejo, a dor, o sofrimento, a saudade, a alegria... Tudo em nós reclama a expressão, o sair de si mesmo e se fazer compreensível ao outro. Estamos e somos sempre em um profundo e indefectível processo de diálogo: eu-eu, eu-tu, eu-nós.

A fé cristã, por exemplo, desde o seu nascedouro foi comunitária. Após a morte de Cristo, fato histórico que ninguém seriamente duvida - é certo que há sempre uns tolos que ganham dinheiro criando teorias bobas para negar um evento que marcou a história da humanidade -, restavam alguns poucos discípulos seus medrosos e acovardados. Pescadores, homens de pouca cultura e sem prestígio social, foram perseguidos pelos judeus e pelos romanos.

Algo de extraordinário ocorreu. Aqueles homens de nenhum relevo começaram a anunciar um evento sem provas: o Cristo morto havia ressuscitado! A morte fora vencida por ele; a boa nova era justamente um escândalo para os judeus (autoridade religiosa) e uma loucura para os gregos (autoridade intelectual), no dizer preciso de São Paulo. E o anúncio foi marcado pela superação do medo, pelo corajoso enfrentamento e martírio. Pentecostes é esse marco: os homens medrosos saem dos esconderijos e anunciam a ressurreição.

E, desde ali, a fé passou a ser não uma viagem individual, uma experiência pessoal exclusiva. A fé cristã é uma experiência comunitária. NÓS CREMOS, dizem os cristãos desde os primórdios. Crer, ter fé, para os cristãos, por conseguinte, é uma experiência pragmática (no sentido linguístico), em que EU ME INSIRO NUMA VERDADE REVELADA E VIVIDA PELOS QUE CREEM. A fé em Cristo é a fé em uma pessoa encarnada, em uma verdade que se põe para mim de fora para dentro e me invade, me toma, me domina.

A fé não é, portanto, a MINHA FÉ, mas a FÉ DOS CRISTÃOS. A fé não se amolda aos meus pensamentos, não sou nem posso ser seu dono ou proprietário. A fé é uma realidade comunitária, na qual me insiro e me descubro como pessoa e como crente. A fé, então, é uma adesão livre e consciente, apaixonada, mas sempre uma adesão.

Os orientais buscam sempre um outro caminho. A verdade seria sempre uma experiência interna, uma busca em si mesmo. Nós seríamos parte de um todo, do deus que habita em mim e para o qual eu retorno após a morte, me dessubjetivando. Ser feliz seria cada vez mais abrir mão de si mesmo, em um processo de autonegação. E esse processo seria uma viagem interna, uma busca por si mesmo em um processo de abandono do self, do ego.

O pensamento, expressão da linguagem que define o nosso mundo e o nosso ser no mundo, seria um mal a ser deixado de lado. Nosso processo de autonegação implicaria a libertação da mente do próprio ato de pensar. Como disse um guru respeitado nos dias de hoje, com seguidores no Brasil, Jiddu Krishnamurti (+ 1986): "Meditação é libertar a mente de toda desonestidade. O pensamento gera desonestidade. O pensamento, no seu esforço para ser honesto, é comparativo e, portanto, desonesto. (…) Meditação é o movimento dessa honestidade no silêncio".

Tomo ainda a fala de J. Krishnamurti como expressão dessa lógica de autonegação através de processos que visam, através da meditação, a busca do abandono de si mesmo, porque pelo abondono do self alcançaria o fluxo vital do qual faria parte e no qual devo me perder, como um Nirvana budista: "Eu aprenderei como estar quieto; aprenderei como meditar com o objetivo de ficar quieto. Eu vejo a importância de se ter uma mente que seja livre do tempo, livre do mecanismo do pensamento, eu a controlarei, a subjugarei, expulsarei o pensamento. Mas isto ainda é operação do pensamento. Isso está muito claro. Então o que ela deve fazer? Porque um ser humano vive nessa desarmonia, ele deve questionar isso. E isso é o que estamos fazendo. Como começamos a questionar isso, ou no questionar, chegamos a essa fonte. É ela uma percepção, um insight, e esse insight não tem nada, coisa alguma a ver com o pensamento? É o insight o resultado do pensamento? A conclusão de um insight é pensamento, mas o insight propriamente não é pensamento. Assim, eu obtive uma chave para isso. Então o que é insight? Posso convidá-lo, cultivá-lo? Isso é afeição, isso é amor. Quando você fala à minha consciência desperta, ela é dura, esperta, sutil, aguda. E você a penetra, penetra-a com seu ver, com sua afeição, com todo o sentimento que tem. Isso opera, nada mais."

E, adiante, ensina ele, completando a sua compreensão: "Não pode dividir a si mesma como "minha inteligência" e "sua inteligência". Ela é inteligência, não é divisível. Agora ela brotou de uma fonte de energia que dividiu a si mesma..." E segue: "Pensamento, matéria, o mecânico, é energia. Inteligência também é energia. O pensamento está confuso, poluído, dividindo a si mesmo, fragmentando a si mesmo. Portanto eu diria que o pensamento deve estar completamente quieto para o despertar da inteligência. Não pode haver um movimento de pensamento e ocorrer o despertar da inteligência."

Como se observa, há uma imensa diferença entre a fé cristã e o pensamento oriental "lato senso": os orientais negam a individualidade, negam o valor do eu e do pensamento, apontam para o TODO ASSUBJETIVADO como sendo a paz e o destino nosso; o cristão valoriza a subjetividade, a dimensão pessoal do homem, e aponta para a fé como como uma realidade intersubjetiva, em que aderimos a verdade do Cristo que se revela na história e nos convida para um diálogo de amor eterno.

O cristianismo valoriza a criação como um todo: a matéria e o espírito têm o mesmo valor como criação do amor de Deus. Ambos, fraturados pelo pecado, são restaurados pelo amor de Deus, que se esvazia, se encarna e assume a nossa história.

A nossa realização não vem da autonegação, mas da nossa afirmação pessoal e comunitária no amor de Deus. Meditar não é abandonar o pensamento, mas voltar o pensamento para Deus, em um ato de entrega e fé. Não preciso, para ser pleno, "esquecer ou abdicar" do mundo lá fora; a plenitude vem em um processo nunca acabado em nossa vida terrena, fraturada pelo pecado, que se realiza através da ressurreição individual. Ou seja, no cristianismo não me dissolvo em um Nirvana; me realizo em plenitude, em minha individualidade, na profunda relação de amor com Deus e com os demais, em um diálogo eterno e constante.

Ouvi com muita atenção as lições de J. Krishnamurti. Veja um dos seus vídeos mais abaixo. E ao ouvi-lo, vi um bom homem reflitindo, em voz pausada, sobre a negação do pensamento, do que somos em nossa constituição antropológica mais profunda. Segundo ele, como não há pensamento completo sobre nada, não se pode pensar na completude, nem o imensurável. Desse modo, Deus e as religiões seriam criações do pensamento, ideologias que levariam às guerras e à mentira.

Mesmo os relacionamentos mais fraternos seriam produtos do pensamento e levariam, também eles, ao conflito. O fundamental seria "romper com a cadeia da continuidade do ego. Só então é possível viver com outro sem uma sombra qualquer de conflito" (1:18:53 do vídeo). Só abrindo mão do eu que poderia estar sem conflito com o outro. Só na autonegação poderia me afirmar perante o outro sem conflito...


Sinceramente, é uma leitura da vida que expurga como mal a religião, a tecnologia, as relações humanas... O que restaria seria, então, abdicar da própria humanidade para, dissolvendo-se no nada, nada restar de si mesmo!

Aliás,  J. Krishnamurti firma, noutro vídeo em que dialogo com o Pe. Eugene Scharllet, a seguinte definição de liberdade: "Liberdade é a negação de ser condicionado por qualquer cultura, por qualquer divisão religiosa ou política". Ou seja, liberdade seria estar morto, porque estamos inseridos sempre na cultura; a cultura humana é o eixo em que a vida se dá; a linguagem, aliás, é a maior expressão da cultura. Libertar-se da cultura seria simplesmente deixar de pensar, de respirar. Lamentavelmente o tal Pe. Eugene Scharllet é muito fraquinho e não sabe nada da própria fé e da própria religião. Ora, NEGAR A CULTURA SERIA UM ATO DE ESCOLHA FUNDAMENTADO, OU NÃO, PORÉM - salvo em caso de morte ou coma profundo - A ADOÇÃO DE UMA OUTRA CULTURA, DIVERSA DAQUELA NEGADA.

Para Jiddu Krishnamurti, então, existe uma realidade viva, uma totalidade, que só podemos alcançar se nos transformarmos numa espécie de folha de papel em branco, livres de todo o conhecimento e crença em que vivemos; livres, portanto, da cultura. E só podemos alcançar isso através de uma ação individual. E o que seria essa individual? Chama-se individualidade, para ele, "o estado no qual a ação tem lugar através da compreensão liberta de todos os padrões – sociais, econômicos ou espirituais. É a isto que eu chamo a verdadeira individualidade, porque é ação nascida da plenitude do entendimento, ao passo que o egotismo tem as suas raízes na segurança, na tradição, na crença. Por isso a ação induzida pelo egotismo é sempre incompleta, está sempre ligada à luta incessante com sofrimento e dor" (in: "A Arte de Escutar; Stresa, Itália - 1ª palestra 2 de julho, 1933).

Note-se: o mundo da vida ("Die Lebenswelt"), que é a nossa realidade onde nos inserimos como pessoas, onde a nossa existência se dá, teria que ser dissolvido, simplesmente. Filosoficamente, Krishnamurti desconsidera uma das grandes conquistas da filosofia moderna, sobretudo a partir de E. Husserl, que é o conceito de "mundo da vida. Husserl já dissera que "O mundo nos é dado de antemão, a nós despertos, que somos sempre de algum modo sujeitos com interesse prático…[o mundo] nos é dado como campo universal de toda praxis efetiva e possível, dado de antemão como horizonte". Ora, Krishnamurti trata a nossa realidade como não-realidade, como um obstáculo ao conhecimento, inclusive.

Não por outra razão, o tempo passa a ser um problema para Krishnamurti. Enquanto estivermos presos ao passado, presente ou futuro, teremos obstáculos ao conhecimento. Só podemos alcançar a verdade se a nossa mente se descolar da temporalidade. Diz ele: "Enquanto houver esta marca da memória, tem que existir a divisão do tempo em passado, presente e futuro. Enquanto a mente estiver acorrentada à ideia de que a acção deve ser dividida em passado, presente e futuro, há identificação através do tempo e por isso uma continuidade da qual resulta o medo da morte, o medo da perda do amor. Para compreender a realidade intemporal, a vida intemporal, a acção deve ser completa". E, adiante, é ainda mais claro quanto ao ponto: "Para mim, portanto, a coerência é um sinal de memória, memória esta que resulta da falta de verdadeira compreensão da experiência. E essa memória cria a ideia de tempo; cria a ideia de presente, passado e futuro, sobre os quais se baseiam as nossas ações. Consideramos o que éramos ontem, o que seremos amanhã. Tal ideia sobre o tempo existe enquanto mente e coração estiverem divididos. Enquanto a ação não nascer da plenitude, tem que haver divisão do tempo. O tempo é apenas uma ilusão, é apenas a incompletude da ação" (In: "A Arte de Escutar", Alpino, Itália - 4ª palestra 9 de julho, 1933).

Quanto mais leio J. Krishnamurti, mais me impressiona a vaguidade das suas afirmações, que entram num campo exotérico e caem em um profundo irracionalismo. A liberdade e a verdade, enfim, não seriam possíveis em nossa vida mundana, em que os fatos e o transcurso da nossa história se dão. Temos que fugir para uma realidade atemporal, libertos dos pensamentos, das crenças, do mundo da vida. A liberdade seria a negação do eu, de todas as circunstâncias vitais que me fazem ser quem sou.


Para onde nos levaria essa forma de pensar de J. Krishnamurti? Ele nos dá uma dica: devemos abrir mão de toda e qualquer segurança, inclusive daquelas advindas da prática de virtudes. Tudo isso seria obstáculos à liberdade: "Quando o homem estabelece uma segurança – a segurança da opinião pública ou da felicidade que ele obtém das posses ou da prática da virtude, que é uma fuga – ele enfrenta cada incidente da vida, cada uma das inumeráveis experiências da vida, com o pano de fundo dessa segurança: isto é, ele nunca enfrenta a vida como ela realmente é. Chega a ela com um preconceito, com um pano de fundo já desenvolvido pelo medo; aborda a vida com a mente totalmente revestida, sobrecarregada, de ideias" ("A Arte de Escutar", Oslo, Noruega - palestra no auditório da universidade 5 de setembro, 1933).

E só haveria um meio adequado para se chegar a essa libertação que leva à verdade: abrir mão do eu, negar-se. Nessa mesma palestra ele assevera: "Eu afirmo que existe essa realidade de vida eterna, mas não pode ser compreendida enquanto a mente e o coração estiverem sobrecarregados, estropiados pela ideia do “eu”. Enquanto essa auto-consciência, essa limitação, existir, não pode haver qualquer compreensão do todo, da totalidade da vida. Esse “eu” existe enquanto houverem falsos valores – falsos valores que herdamos ou que perseverantemente criamos na nossa busca de segurança, ou que estabelecemos como a nossa autoridade na busca de conforto".

Insisto nesse ponto: a doutrina de J. Krishnamurti advoga o mais absoluto irracionalismo, a negação do eu, a abdicação dos nossos valores e das conquistas da tradição. A cultura, as nossas descobertas científicas, as nossas crenças, tudo seria um obstáculo à verdade e à liberdade. O que nos restaria, então, diante disso? A resposta que ele nos oferta - perdoem-me a sinceridade - é simplesmente risível e tola: "essa dificuldade existirá enquanto as vossas mentes estiverem sobrecarregadas com esta consciência a que chamamos “eu”. Não posso dar-lhes valores correctos, se eu vo-los dissesse, fariam disso um sistema e imitá-lo-iam, estabelecendo desse modo apenas uma outra série de falsos valores. Mas podem descobrir por si próprios os valores correctos, quando se tornarem verdadeiramente indivíduos, quando cessarem de ser uma máquina. E só se podem libertar desta máquina mortífera dos falsos valores quando estiverem muito revoltados".

J. Krishnamurti prega simplesmente o nada, a fuga da realidade, negando o valor da história e da cultura, porém negando-se a colocar qualquer outra coisa em seu lugar. Ora, para mim isso não é muito pouco; é simplesmente o irracionalismo pintado de misticismo exótico.
 

Ora, somos embebidos na cultura; a expressão mais imediata do "tesouro comum da humanidade"(Gottlob Frege) é a linguagem. O ato de pensar é individual, mental, mas se realiza na linguagem; o pensamento, produto do ato de pensar, pode ser transmitido a outros e, não raro, pensamos os mesmos pensamentos pensados por outros.

Tudo o que construimos, tudo o que transformamos, é cultura. O fazer humano é sempre dentro de uma tradição, dentro de uma realidade simbólica intersubjetivamente vivida. A cultura produz e reproduz cultura. A reflexão pessoal, posta dentro de um contexto de diálogo, produz consensos e dissensos. A dialética da argumentação, a tese e antítese, as múltiplas formas da compreensão geram mais cultura.

Essa é a nossa riqueza. A busca do consenso é justamente isso: uma busca interminável! Se o agir comunicativo é livre, sincero, voltado ao consenso, podemos avançar na busca de pontos de encontro cada mais firmes, mas o consenso qual tal é uma quimera; o conflito em si mesmo não é um mal: é fonte de crianção intelectual e novas formas de pensamento.

A crença, seja ela religiosa ou filosófica ou de que natureza for, é algo ínsito à cultura humana. Ter pontos de vista, ter uma concepção de mundo, é próprio à condição humana. Por isso, soa desarrazoado quando se receita o fim das crenças para a obtenção da paz:

"A crença inevitavelmente separa.Quem tem uma crença, ou quando buscam segurança nessa crença, separa-se daqueles que buscam segurança em alguma outra forma de crença" (J. Krishnamurti)

Ora, aqui já se expressa uma crença: a de que a crença separa! Krishnamurti universaliza a sua crença, excluindo qualquer outra. E a sua crença é niilista: melhor não ter crença alguma! É dizer, o único meio de encontrar a liberdade e a paz seria deixar de pensar, deixar de se interrogar sobre nós e sobre o mundo, deixar de exercer a nossa capacidade especulativa. É uma lógica que nos diz o seguinte: sejamos amebas e encontraremos a paz!

Impressionou-me muito os vídeos que assisti de J. Krishnamurti. Um homem de fala pausada, que passa uma paz ao falar, demonstrando, em seu gestual, ter aquela visão de algo hermético, profundo, que nós não conseguimos apreender de imediato. Mas quando vamos decompondo racionalmente o seu discurso, quando vamos analisando as consequências lógicas da sua fala, sobra uma sensação de que restou muito pouco para ser aproveitado. E o pouco que restou é vago demais.

A filosofia ocidental avançou demais, mas esse misticismo hermético dos orientais seduz muito aos que estão com sede de sentido. Evocam sentimentos bons, difusos, de modo que aquela fala meio sem sentido parece contecer verdades profundas que fazem bem. É como aquela bebida enteógena conhecida como "ahyausca", chamada Santo Daime: provoca sensações boas... E só, ao final!


Vou terminar as minhas impressões sobre J. Krishnamurti, analisando o que ele compreende por "amor". Disse eu que essa era uma palavra plurívoca, que não podia ser usada como chave para tudo. Um guru dizer que a solução para a felicidade é o amor, ou que a verdade é o amor, ou que a liberdade é o amor, simplesmente põe as coisas no campo do óbvio e - tanto pior - do que não pode ser debatido. Ninguém discordará sobre a importância do amor, salvo se comecemos a nos entender sobre o que cada um entende por "amor". Aí o pau canta, não é mesmo?!

J. Krishnamurti tratou sobre o amor em seu livro "Liberte-se do passado", na décima parte. Como sempre, para abordar o tema ele nega o valor da cultura, das compreensões existentes. Para ele, afinal, a cultura é um mal: "Assim, para examinarmos a questão do amor - o que é o amor - devemos primeiramente libertar-nos das incrustações dos séculos, lançar fora todos os ideais e ideologias sobre o que ele deve ou não deve ser. Dividir qualquer coisa em o que deveria ser e o que é, é a maneira mais ilusória de enfrentar a vida". Em seguida, exclui o valor das concepções existentes: "Em primeiro lugar, rejeitarei tudo o que a Igreja, a sociedade, meus pais e amigos, todas as pessoas e todos os livros disseram a seu respeito, porque desejo descobrir por mim mesmo o que ele é".

Ele passa, em seguida, a dizer o que não seria o amor. Diz ele: "No estado de pertencer a outro, de ser psicologicamente nutrido por outro, de outro depender - em tudo isso existe sempre, necessariamente, a ansiedade, o medo, o ciúme, a culpa, e enquanto existe medo, não existe amor". Ou seja, rejeita ele como amor a entrega do homem a uma mulher, e vice-versa, em um relacionamento sadio e profundo de entrega e ajuda.

À falta de melhor conceito, e para forjar algo novo, vai para o exotérico ao dizer o que é o amor: "Não sabeis o que significa amar realmente alguém - amar sem ódio, sem ciúme, sem raiva, sem procurar interferir no que o outro faz ou pensa, sem condenar, sem comparar - não sabeis o que isso significa? Quando há amor, há comparação? Quando amais alguém de todo o coração, com toda a vossa mente, todo o vosso corpo, todo o vosso ser, existe comparação? Quando vos abandonais completamente a esse amor, não existe 'o outro'". Ora, pergunto eu: se não existe o outro, o ser amado foi absorvido pelo eu? Onde fica a polaridade do amor na relação eu-tu? O eu mata o tu, absorve-o?

Bem, aí nosso guru se sai com afirmações vazias, fátuas, que me impressionam pela falta de conteúdo. Assere ele: "Mas, se desejais continuar a descobrir, vereis que o medo não é amor, a dependência não é amor, o ciúme não é amor, a posse e o domínio não são amor, responsabilidade e dever não são amor, autocompaixão não é amor, a agonia de não ser amado não é amor, que o amor não é o oposto do ódio, como também a humildade não é o oposto da vaidade. Dessarte, se fordes capaz de eliminar tudo isso, não à força, porém lavando-o assim como a chuva fina lava a poeira de muitos dias depositada numa folha, então, talvez, encontrareis aquela flor peregrina que o homem sempre buscou sequiosamente."

Resta-me perguntar, quase em desespero: que coisa é o amor, afinal, para o senhor, meu caro guru? A resposta dele me deixou maravilhado: um engodo retórico de dizer o raso parecendo dizê-lo de modo profundo. Krishnamurti nos diz algo absolutamente vazio de sentido: "O amor é uma coisa nova, fresca, viva. Não tem ontem nem amanhã. Está além da confusão do pensamento. Só a mente inocente sabe o que é o amor, e a mente inocente pode viver no mundo não inocente. Só é possível encontrá-la, essa coisa maravilhosa que o homem sempre buscou sequiosamente por meio de sacrifícios, de adoração, das relações, do sexo, de toda espécie de prazer e de dor, só é possível encontrá-la quando o pensamento, alcançando a compreensão de si próprio, termina naturalmente. O amor não conhece oposto, não conhece conflito".

Fiquei chocado com essa definição de amor. Com todo o respeito, só faltou dizer: amor é porra nenhuma! Eu prefiro uma definição tão profunda quanto a que ele ofertou e que concebi agora: AMOR é o vazio do vazio do vazio, invertido e desdobrado no encralacrado da vida. Amar é pegar o avesso do sentimento e embuti-lo no reluzimento da alma até que a luz se faça presente no infinito do ser. Traduzindo: porra nenhuma!

Feitas essas reflexões, peço cuidado aos que se encantam com esses gurus. Os caras dizem muito de coisa nenhuma, mas de uma forma inteligente, exotérica e exótica, num misticismo sem compromisso com a lógica. É isso. E me perdoem os que gostam dessas construções.
 

Eu creio em ti, Senhor!

Eu creio em ti, Senhor!

Só me compreendo, com meus pecados, com meus erros, com a minha fragilidade, se meus olhos te alcançam pequeno e frágil na manjedoura. Despojado de tudo, até mesmo da dignidade de um local adequado para o teu nascimento.

Só me entendo na minha miséria através do teu amor. Meus medos, minhas angústias, minhas dúvidas apenas se dissipam se olho para a tua coragem diante de Pilatos, diante dos que te acusavam e te cuspiam.

Só me vejo grande, inteiro, feliz se se vejo a tua firmeza diante do mundo, o teu olhar doce e misericordioso, a tua infinita paciência em nos ensinar, acolher e mostrar o caminho.

Só consigo ser eu mesmo se te olho na cruz, sangrando, destruído, derrotado da forma mais amarga e abjeta. É na tua entrega por mim que me aceito e sinto que posso ir adiante sem medo da vida, porque tu, Meu Deus, venceste a morte.

Enfim, eu creio em ti! Creio que o teu amor é tão profundo que a ressurreição me abriu as portas para alcançar os teus braços e ser acolhido em minha vida pequena, insignificante e tola. Tu me fazes grande, tu me me fazes forte, tu, meu Senhor e meu Deus, és o "sim" que eu não pude dar, o gesto que quis mas não pude fazer, a coragem que tantas vezes me falta.

Eu creio em ti, Senhor! Tu és meu Deus!

segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

Paralelas

Linhas paralelas se tocam em algum ponto do tempo ou espaço? Na geometria euclidiana essa operação é impossível; destruiria o próprio conceito. Matematicamente, as paralelas vão ao infinito. Não há possibilidade do toque, da perda de rumo, como fossem linhas de trem, construídas exatamente para serem uma para a outra companheiras do desencontro.

Mas na geometria da vida as linhas, mesmo quando paralelas, terminam tendo um ponto de confluência: às vezes, o acaso; por vezes, um olhar; vezes bastas, uma palavra; outras tantas, um gesto qualquer. E o que era para ser um infinito desencontro transforma-se em uma inversão na lógica euclidiana: as linhas se tocam, se invadem nos espaços e no correr do adiante.

Almas que se encontram são como linhas paralelas que desafiam o destino, a história, o "script", a receita de bolo pronta e acabada. Desafiam, sim, porque negam-se a ler páginas escritas previamente, roteiros traçados por se-sabe-lá-quem, que com com régua e esquadro desenha o caminho ou, lápis à mão, bosqueja uma crônica antecipada do que devemos ser.

O amor é o elemento que destrói a geometria perfeita da vida predisposta e, em um giro sobre si mesmo, redesenha linhas em descompasso e reconstrói novas realidades. É ele essa revolução que esmiuça e desqualifica todos os postulados, rompendo os vincos precisos dos paradigmas, mostrando que a nossa racionalidade simplesmente se rende àquilo que está além mesmo da própria linguagem, do plano da expressão: amar é dizer - de si mesmo e do outro - sem a posse das palavras e para além dos próprios pensamentos! É sentir o sentimento; é assumir o outro antes mesmo do cogito, do "eu penso".

O amor invade a cidadela da razão. Toma-lhe as terras, derruba as fronteiras, se apodera dos seus despojos e faz escravo, como diria o poeta, o vencedor! Amar é ganhar para perder-se, consoante Camões proclamara ainda nos tempos das caravelas. E não sem razão. Não sem olhar para o Sr. El Rey, o amor, e lançar, sem medidas, as velas ao mar da vida.

Há revolução no amor. Quem não sentiu a vida mudar ao ser tomado por ele, quem não sentiu o coração espicaçado em mil pedaços, quem não sentiu a perda do senhorio sobre os próprios sentimentos, não viveu a experiência do amor. Pode ter gostado, pode ter nutrido um sentimento bom por alguém, pode até ter se enamorado, mas não viveu a experiência daquilo que os poetas proclamaram desde sempre, quando o homem começou a se entender e brincar com as palavras. E se você - sim, você que me lê! - não viveu nada disso, a vida lhe roubou a maior das experiências, deixando-o longe do abismo, é certo, mas sem a emoção que ele proporciona.

Porém, que viveu essa densa tempestade, não adianta fugir dela. Ele, o amor, não abandona quem o descobriu comendo-lhe as entranhas da alma. A fuga é o salto no vazio da autonegação. Se o amor não é correspondido com a mesma intensidade e força, o único modo de sobreviver a ele não é negá-lo, é simplesmente deixá-lo vivente, lá em quarto escuro do coração, privado de água e pão, até que, moribundo, não tenha forças para ferir a alma, embora subsista vivo, ali onde não pode gritar para ser ouvido. Mas, nesse caso, nunca deixe que os olhos vejam a pessoa amada: a masmorra em que o amor foi aprisionado poderá não existir à experiência e viver dias de Bastilha.

O amor, finalmente, é a mais bruta força da natureza. Morre-se por amor, agiganta-se por amor, faz-se guerras por amor. Reinos caíram em razão dele, reis abdicaram, plebeus viraram príncipes, obras de arte foram compostas, monumentos erguidos. Em seu nome, a história da humanidade foi escrita e reescrita. Tudo pelo amor humano, amor de homem e mulher. Por ele, as paralelas se curvam e se perdem no enlace do infinito!

domingo, 11 de dezembro de 2011

Sonhos e realidade: "sim, eu posso!".

Somos muitas vezes limitados em nossos sonhos. Muitos dizem para nós: "vocë não pode!", "isso é impossível!", "você não consegue!". E isso, mais da vez, é dito por pessoas que amamos, que têm receio e apenas passam para nós os seus próprios limites, os seus próprios medos diante da vida.

São como a mãe de Marisa Ventura (J.Lo) no filme "Encontro de Amor". Diante do primeiro problema, diante de sonhos que parecem difíceis, não apenas a negativa do incentivo, mas a realidade crua jogada na cara, como uma âncora a impedir que se navegue para águas mais profundas:

- "Quer continuar a ter sonhos que nunca vão se realizar ou botar comida na mesa?", pergunta ela à filha mostrando-lhe contas a serem pagas.

Diante de uma pergunta assim, qual a resposta possível? Deixar que o medo tome conta, deixar os sonhos de lado para simplesmente "lavar o chão", como seria o destino de Marisa?

E ela dá a resposta possível, corajosa, definitiva:

- "Eu vou pegar essa chance sem medo nenhum, sem a sua voz na cabeça dizendo que eu não posso!".

Sim, como é imperativo, em nossas vidas, dar os saltos necessários, com os riscos todos, para que possamos transformar aqueles sonhos em uma nova realidade. Nem sempre é fácil, nem sempre dá certo, mas ao menos podemos olhar para a vida e dizer: "eu tentei!; eu lutei".

Afinal, vencer é apenas uma possibilidade; lutar, porém, é sempre a única saída digna e definitiva.

Aí podemos ver, quem sabe!?, as pessoas que antes toldavam os nossos sonhos, dizerem como a mãe de Marisa, ao final do filme, muito orgulhosa:

- "Aquela é a minha filha!", apontando para a televisão.



A frase do filme, dita pelo Mordomo do Hotel:

"O que fazemos, não define o que somos. O que nos define é o quão rápido nos levantamos depois de cair."
Maid in Manhattan - Um encontro de amor.



(Uma breve reflexão sobre o filme água com açúcar "Encontro de Amor", 2002).

quinta-feira, 8 de dezembro de 2011

Escolhas


Lá estava a vida com as suas escolhas. Cá estamos nós, com as nossas possibilidades. E entre um e outro, entre a vida e quem somos, há os passos a serem dados, as opções a serem assumidas, o destino a nos bater a porta. Todos nós, indefectivelmente, vivemos isso. Todos nós, indefectivelmente, caminhamos em um universo de escolhas e possibilidades.

O que é a felicidade? O encontro certeiro com a nossa vocação, o transformar as possibilidades em realidade, o fazer as nossas escolhas segundo o nosso coração. A felicidade é um estado de refazer-se constante! É o resultado dos passos dados, dos caminhos percorridos, do suor despendido na lida sem fim.

Não pode ser feliz quem se trai; não pode ser feliz quem se nega a si mesmo no processo da vida. Porque faz de si uma farsante, um reflexo falso dos seus próprios sentimentos e sonhos.

Eu simplesmente admiro - sim, admiração! - quem se permite questionar. Quem põe em xeque as suas certezas e se deixa indagar sobre os seus próprios fundamentos. Perguntar-se é em si mesmo uma atitude corajosa. Quem sou?, que é para mim a vida?, como Deus se apresenta para mim?, quais as tradições que quero ou não seguir por razões tais ou quais?, quais caminhos devo percorrer?... O exercício sincero das perguntas que buscam respostas é a mais profunda experiência de si mesmo. Revela a grandeza maiúscula de quem se põe diante da vida com um vivente autêntico.

E o perguntar-se sinceramente permite sonhar quem tem a coragem linda, encantadora, de se refazer todos os dias à procura de si mesmo. Só quem se busca cresce; só que se olha a si mesmo com verdade se agiganta diante das escolhas e possibilidades. Só quem, afinal, tem a profundidade para se perguntar "quem sou nesse mundo que me cerca?" pode estar sempre à procura das constantes respostas que nos fazem crescer, buscar, amar, sonhar e... dar os passos para a construção de quem somos de fato.

Amor líquido

Três coisas que dilaceram o amor maduro: o ciúme sem medida, a desconfiança injustificada e as atitudes intempestivas.

O amor de hoje é líquido, para usar a expressão de Zygmunt Bauman, porque amar é cuidar. O bom jardineiro cuida do seu jardim, conhece as vicissitudes das suas plantas. Para isso, deixa-se estar com elas. Esse "perder tempo" é fundamental no amor, também. Amar é enamorar-se. É ganhar tempo ao perder-se nele, criando raízes, olhando nos olhos, invadindo todas as reentrâncias da alma... e não apenas dela!

"É um cuidar que se ganha em se perder", já dizia Camões, com a sua pena precisa de poeta. O perder-se em momentos de conversas, de cumplicidade, de uma dança doce de mundos que se querem amalgamados numa história construída passo a passo.

Quem não sabe perder tempo com quem se ama não sabe amar. Quem se perde em ciúme tolo, em desconfiança excessiva ou em atitudes intempestivas, perde justamente uma das coisas mais doces do amor: a cumplicidade.



O amor nem sempre é investimento; é perda para um ganho humano, Perda do orgulho, perda dos medos, perda do EU para iniciar o NÓS que não se funde e se complementa, perda do tempo dos negócios em favor do tempo de um telefonema de carinho... Perder nem sempre é subtração, afinal!

O bom amor líquido é líquido pelo que se provoca na mulher amada; e nada mais!

Ter medo


Ter MEDO do amanhã é uma necessidade de sobrevivência. Quem não tem medo não tem como saber valorar o que vale a pena nos levar aos riscos. O medo são os nossos sentidos avisando que há razões para cautela, para que o passo dado seja melhor medido e pesado. Mas o medo não pode nos paralisar, não pode ser a desculpa para abrir mão do que acreditamos e do que realmente somos.


Não é ruim ter medo. Mas é terrível ser dominado por ele, permitir que ele dê a última palavra, abrindo mão dos sonhos, das razões que nos fazem sorrir, gozar a vida, dar passos firmes rumo ao desconhecido horizonte que de quando em quando se nos apresenta. Por vezes, horizontes que se nos apresentam uma única vez na vida...

"Não tenha medo!", "Non abbiate paura!". João Paulo II nos disse as palavras de Jesus para que sempre nos lembremos que o medo faz parte da vida e da história humana, mas que a coragem é a nossa verdadeira vocação para a felicidade.

A aventura de viver


Viver é sempre uma impressionante aventura. Cada dia aprendo mais isso. Cada dia acho que vale mais a pena as lutas diárias, as defesas das convicções, as buscas constantes… Cada dia acredito mais que, aconteça o que acontecer, é preciso sonhar, ter caminhos a seguir, ter a força para pegar a vida com as unhas, sem medo do amanhã que, poxa!, ninguém sabe como será. Podemos construi-lo, é certo, mas sempre a partir do HOJE. O HOJE é o passo dado, é a decisão tomada, é o querer feito ação…


Quem se prende demais ao amanhã, logo se vê!, não dá conta que o amanhã será sempre o amanhã, que não há pontes outras para ele, senão o indefectível HOJE gritando, pulsando, mostrando que a vida é dom de Deus. Quem olha demais para o horizonte esquece o caminho que leva a ele…



Às vezes o caminho é pedregoso, às vezes tem espinhos e armadilhas, às vezes esfola os pés e dá medo… Mas está ali, nos desafiando, porque depois dele há já o que nos espera e buscamos… Não se constrói nada sem luta, sem riscos, sem medos… E é por isso que o resultado de tudo isso se chama “conquista”!

Medo e coragem


Quem não tem medo não sabe o que é ter coragem. O medo é justamente a autopreservação gritando. Mas a coragem é a ponte que o ultrapassa. O medo de sofrer o já sofrido, de viver o já vivido, é a renúncia da vida mesma, porque não há vida sem chagas, sem marcas fortes vincando a alma e dizendo para ela mesma: “Vivi!”. Sim, viver é amadurecer, envelhecer, ter experiências boas e más, criando um couro curtido para novas batalhas…
Os desafios existem porque há algo para além de nós que nos chama. Algo que vale a pena. É isso que nos move como pessoas e nos faz crescer. E há sempre o medo de falhar, de não conseguir, de estar aquém da vitória! Mas se não houver o medo da derrota, como alguém pode se preparar para a vitória, afinal? É o medo de perder na dosagem certa que nos faz estar prontos para vencer…
Não podemos ter as respostas para tudo. Não podemos ter a vida como uma receita de bolo. Não podemos imaginar que tudo de antemão dará certo. Mas podemos ao menos nos compromissar em que tudo dê certo, fazendo a nossa parte e vivendo intensamente a convicção de que, sim!, é possível!

Cheiro e essência


A mulher amada tem um cheiro próprio, único, que invade não apenas as narinas, mas se apodera dos sentidos todos, com a delicadeza de um vulcão em chamas. E faz maciço os sentimentos, como se ganhassem uma vida própria, autônoma.


A pele, os poros, cada pedaço do corpo da mulher amada exala o seu perfume, que não existe em perfumaria outra alguma, que alquimista algum teria capacidade de isolar. É cheiro da natureza, cru, que se adelgaça com o suor da dança apaixonada, com os movimentos imperativos que se impõem e ganham vida própria.



O cheiro da mulher amada é único! Não se sente apenas; se bebe, se consome, se mastiga! Ele tem uma densidade própria, que desafia todos os sentidos, mostrando que somos tão complexos que só há unidade ali, onde os sentidos se perdem e se deixam perder…



Ah, esse, aliás, um dos mais poderosos sinetes do amor: o cheiro da mulher amada! O querer tanto sentir que dói, porque alimenta a alma, faz explosivo o coração e mostra, afinal, que quando amamos queremos levar em nós a essência do outro… Afinal, a essência é o cheiro!

Amar, amar somente, é um beco sem saída


Amar, amar somente, é um beco sem saída, já dizia Pe. João Mohana. Amar pede mais; pede entrega, abertura, cumplicidade, cuidado com quem se ama, respeito. Pede que o outro seja parte da vida, seja íntimo por necessidade. Amar não cria fronteiras, abarca; não cria muros, aproxima; não cria barreiras, acaricia. Amar pede o outro para si, de um modo tal que o outro continue outro, mas se faça o mais próximo, o mais querido, o mais necessário.

Enquanto não sentir isso por alguém, não saberá o que é o amor de verdade. Há de existir um momento, quando os olhares se tocam pela vez primeira, em que haja um tanto de perda de foco, de eclipse da razão. O amor que rnunca soube o que é rasgar o peito, vassalar a alma, fazer sonhar, não pode ser digno desse nome. O amor que nunca fez tremer corpo e alma, que nunca tomou minutos ou horas de pensamentos vastos e suspiros fundos, que não tomou de si o apetite e as razões mais miúdas para agir, haverá de ser tudo, menos amor.

O amor acalma com o tempo, mas não perde aquela fagulha inicial, não deixa que os olhos se acostumem com a nudez da mulher amada. Há ali sempre um desejo que floresce, um olhar que se renova, um querer que exaspera. Acalmar, porém, não é adormecer nem estiolar-se; é simplesmente passar dos raios e trovões à primavera.

O amor, enfim, tem tempero variado em uma mesa farta. Vai da iguaria mais apimentada à sobremas mais suave…

Sim, aqui e ali pode haver algo fora do tom, porque o amor não quer a perfeição; o fundamental para ele é a possibilidade constante do diálogo que se quer constante, das pontes que não se fecham, da necessidade do eterno recomeço. O amor perfeito é o que se enamora da imperfeição: as rugas virão, a pele perderá aos poucos o viço, mas ele, o amor, vai se renovando como criança que apenas quer brincar, seja com que brinquedo for… Para a criança não importa a perfeição do brinquedo, mas a qualidade da diversão. Assim é para o amor!

Amar, amar somente, é um beco sem saída, simplesmente porque amar pede atos, gestos, sinais. Amar, enfim, nos tira de nós para olharmos a vida sem esquecer do ponto de vista de quem se ama. É a porfia lúdica e impensável entre o EU e o TU, que não se dissolve no NÓS, mas num EU-TU rico e profundo. Somos, no amor, dois que se buscam sem se dissolver na unidade, na identidade, na perda da referência de si mesmo. Na polaridade e tensão de duas vidas que se querem, que cedem aqui e ali para que se permitam ser e estar, consiste o amor.

sábado, 19 de novembro de 2011

Vida

A vida tem esquinas, tem caminhos largos, tem atalhos...

Há vida! Na palavra que malfere o coração,

no olhar que perdeu o brilho e se fechou,

no sorriso que empalideceu e murchou.

As esquinas iniciam possibilidades;

os caminhos largos, a segurança do já pronto;

os atalhos, os riscos das facilidades triviais.

Quem se perde de si perde o olhar, o sorriso e o coração.

Há vida! Há sempre a chance de recomeçar...

Sobre orgulho, amor e vertigem: uma leitura de Dostoiévski

Há dois textos meus sobre o sequestro e morte de Eloá, em Santo André, por um jovem atormentado pelo amor (por ela) e a rejeição (dela para ele). Lindemberg chocou o país com o sequestro da sua ex-namorada e, depois, com o tiro que lhe roubou a vida. O amor do outro que esmigalhou o amor por si mesmo, ao ponto limite de expor publicamente as suas víceras, naquilo que Milan Kundera (em "A Insustentável Leveza do Ser") tão bem definira como sendo "vertigem". O texto integral pode ser lido nesse link (http://migre.me/6c5kv).

Há uma passagem que reproduzo aqui:

O amor de si não exclue o amor pelo outro; o pressupõe. A admiração pelo talento alheio necessita, para ser sadio, da convicção sobre os próprios talentos, porque senão o reconhecimento vira ressentimento e inveja. Com essa afirmação, podemos entender a loucura de Lindemberg, o seqüestrador de Santo André: ele aprisionou Eloá e depois a matou porque não se amava o suficiente, ao ponto da admiração e da necessidade do amor dela por ele esmagá-lo. O sentimento de rejeição decorre de ressentimento: será que ela encontrou alguém melhor do que eu? Será que eu sou insuficiente para ela? Ora, como lhe falta orgulho por carecer de amor próprio, restou-lhe a vertigem, no sentido empregado por Kundera. De fato, em "A insustentável leveza do ser", Milan Kundera descreve de um modo único o sentimento de vertigem. Diz ele, em seu primoroso romance:

"O que é vertigem? Medo de cair? Mas porque temos vertigem num mirante cercado por uma balaustra sólida? Vertigem não é o medo de cair, é outra coisa. É a voz do vazio debaixo de nós, que nos atrae e nos envolve, é o desejo da queda do qual nos defendemos aterrorizados."

Noutra passagem, ainda mais rica, fala-nos de modo mais genuíno e profundo:

"Era a vertigem. Um atordoamento, um insuportável desejo de cair. Eu poderia dizer que a vertigem é a embriaguez causada pela nossa própria fraqueza. Temos consciência dessa fraqueza mas não queremos resistir a ela e nos abandonar. Embriagamo-nos com ela, queremos ser mais fracos ainda, queremos desabar em plena rua, à vista de todos, queremos estar no chão, ainda mais baixo que o chão."

O amor frustrado, ferido, muitas vezes nos leva a essa necessidade do abismo; é o orgulho extremado fazendo-se escravo de feridas fundas.

Talvez Friedrich Nietszche tenha traduzido muito bem aquele conceito de VERTIGEM de Kundera em uma das suas frases lapidares: "Quem combate monstruosidades deve cuidar para que não se torne um monstro. E se você olhar longamente para um abismo, o abismo também olha para dentro de você” (in Para Além do Bem e do Mal).

Faço essas reflexões sob o impacto da leitura que RENÉ GIRARD fez das obras, da vida e do pensamento de Fiódor Dostoiévski. Trata-se do livro DOSTOIÉVSKI: DO DUPLO À UNIDADE, da editora É Realizações. Indico essa obra. E faço aqui as suas anotações sobre o orgulho, que bem poderia ser aplicado a Lindemberg como aos que sofreram a frustação no amor e reagiram de um modo "vertiginoso". Cada dia me encanto mais com Dostoiévski.

Quem se fere no amor e tem uma autoestima mal-resolvida, como Lindemberg, termina escravo do seu orgulho ferido e, pior, passa a viver um processo masoquista. O orgulho excessivo do amante frustrado leva ao masoquismo, afinal: "O masoquista não pode encontrar sua própria estima senão por uma vitória escandalosa sobre o ser que o ofendeu; mas esse ser adquire, a seus olhos, dimensões tão fabulosas que lhe parece igualmente o único capaz de obter essa vitória. Há, no masoquismo, uma espécie de miopia existencial que limita a visão do ofendido à pessoa do ofensor. É este quem define não apenas o objetivo do ofendido mas também os instrumentos de sua ação... O ofendido é condenado a errar indefinidamente em torno do ofensor, a reproduzir as condições da ofensa e a fazer-se novamente ofender"(p.41).

E por que o orgulhoso que teve a frustração no amor se deixa cair assim nessa situação masoquista humilhante, vivendo publicamente a sua vertigem? Renè Girard responde com a análise da obra "O Eterno Marido" de Dostoiévski: "Por que ele se precipita assim na humilhação? Porque é imensamente vaidoso e orgulhoso. A resposta é paradoxal apenas na aparência. Quando Trussótzki descobreque sua mulher prefere outro, o choque que sofre é terrível, pois ele se impusera a tarefa de ser o centro e o umbigo do universo... é incapaz de considerar um meio-termo entre dois extremos; o menor fracasso condena-o portanto à servidão... Depois de se ter concebido como um ser de que irradiavam naturalmente a força e o sucesso, ele se vê como um dejeto e daí seguem-se inevitavelmente a impotência e o ridículo". (p.42-43 da obra de Girard).

A vertigem, desenhada por Kundera, revela-se em Dostoiévski de um modo ainda mais vincada: é o orgulho ferido que passa a ser masoquista e humilhado, em um ciclo vicioso e doentio. Tão cioso de si, não soube suportar a desilusão, perdendo-se de si mesmo por perder a autoconfiança e a própria autoestima.

É engraçado - para não dizer trágico! - que pessoas que passam por esse processo, como Lindemberg (aqui, nesse caso, no limite extremo da perda de sentido e na necessidade de destruir o objeto do seu amor), mostram-se orgulhosos, imaginam estar atacando o seu ofensor quando, na verdade, apenas se subjugam mais, mostram-se escravizados pelo orgulho ferido e pela dor. Humilham-se achando estar humilhando; cedem a sua liberdade, proclamando estar livre. Ou seja, passam a viver a patologia de um sentimento frustrado e masoquista.

Todo esse misto de orgulho e humilhação é exposto em uma passagem clássica do livro de Dostoiévski "O Duplo", que sequer está entre as suas obras geniais. O personagem Goliádkin leva esse orgulho ferido ao extremo, àquela vertigem kunderiana, ao abismo nietszcheano, ao dizer: "Quanto a mim, o que tenho feito em minha vida é levar até o fim aquilo que vocês não ousam levar nem até à metade, sempre denominando sua covardia de sabedoria, consolando-se assim com mentiras. Se bem que eu talvez esteja bem mais vivo que vocês".

Para Renè Girard (p.55), essa coisa que Goliádkin LEVA ATÉ O FIM é o orgulho. É essa catarse pública que é a vertigem, levada ao extremo. E o orgulho ferido, digo eu, termina suscitando sempre a autopiedade, essa execração pública de si mesmo, expondo as dores para além do limite do pudor suscitado pelo amor próprio.

Dostoiévski - essa a sua genialidade - nos leva para esses labirintos da psique humana, essas perdas de referências claras causadas pelas frustrações, pelo orgulho inflado e imaturo que não se aceita ferido. E nada há de mais doloroso do que autopiedade do orgulho frustrado, que há de se expor no vazio de si mesmo,na sua falta de capacidade de lidar com o insucesso, com as perdas, com as feridas da vida.

O amor pressupõe o amor próprio íntegro, maduro, equilibrado. A desordem do amor próprio leva ao masoquismo e à humilhação (pior, a humilhação que sequer se reconhece e sabe se vê como tal!). O amor autêntico e maduro é orgulhoso apenas na medida em que preserva o EU para, inteiro, aventurar-se na aventura do OUTRO. O orgulho, afinal, que conta é o orgulho suave que faz sadia a relação EU-TU, sem se perca nunca os termos da relação e a importância dessa polaridade.

quarta-feira, 16 de novembro de 2011

SONHO E REALIDADE: UMA REFLEXÃO AOS 42 ANOS

Nada mais triste do que um sonho que não se permitiu sonhar inteiro. Um sonho nascido e renunciado porque sonhá-lo seria desinstalar as marcações da realidade. E a realidade é o que importa, dizem os historiadores, os jornalistas e profissionais das melhores estirpes. Trabalhar com a realidade dá menos trabalho, porque o real é o barro que se pega com as mãos e se pode dar formas variadas, sempre calculadas, medidas e pesadas.

O mal do sonho é que ele não se deixa domesticar, não pode ser preso em uma fórmulas nem tabulado previamente. O sonho é a erupção do imponderável. E a vida que somos não tolera o imponderável: queremos, por segurança, as coisas que se medem, se contam e se qualificam em rótulos precisos.

Sim, as palavras são rótulos que pomos sobre as coisas, dizem os nominalistas de há muito. Rótulos que não dizem a sua essência, mas bem servem para a comunicação: chamo o objeto sobre a mesa de copo; bem poderia chamá-lo de cobra, sem o risco porém de ser mordido por ele.

Os sonhos não admitem rótulos; não são bons ou maus, feios ou bonitos, certos ou incertos, seguros ou inseguros… São sonhos e nos desafiam por isso!

Lá ia o jovem sonhando em ser músico. A mãe disse-lhe: “Ser músico? Ser artista? Mas isso lá é profissão?!”. Ao rotular a vocação, matou-se um sonho esmagado desde o início. Porque profissão é aquela que tem diploma, que exige estudos e reconhecimento social, pensou a mãe. E ali, naquele momento em que a realidade rotulou o sonho, perdeu-se um Tom Jobim, matou-se um Mozart, eliminou-se um Chico Buarque de Hollanda.

Lá ia o jovem dizendo, aos 28 anos: “Não me realizo sendo juiz de Direito. Quero ser advogado!”. “Louco, você é uma pessoa soberba!”, me disseram uns; “Como pode abdicar da estabilidade?!”, vergastaram outros. Por que será que o sonho incomoda a tantos, me perguntava na angústia de renunciar à magistratura para voltar à advocacia. Ah, os rótulos são cruéis e tentam matar os sonhos!

Sonhar não é fácil. Porque sonhar é revolucionário! Sonhar, afinal, é um passo para além da realidade, é muitas vezes negá-la ou, como dizem os alemães (Hegel, à frente): “aufhaben”. Sim, uma relação dialética de superar conservando algo superado. É dizer, no momento da síntese, o estado antitético é ao mesmo tempo preservado e transcendido, negado e realizado. Sonhar é realizar esse “aufhaben” na realidade mesma, indo além dela sem dela perder-se jamais.

Há quem aprisione os sonhos em rótulos. E as palavras às vezes, com a sua carga emotiva, simplesmente destróem os sonhos. E passamos a ser gerenciados pelo que os outros pensam, dizem, pesam e etiquetam. Ou seja, a realidade passa a ser simplesmente o que de antemão nos deram como o possível, o permitido, o normal. Nada há de mais destrutivo para os sonhos do que a "normalização"da vida. Ora, o bom profissional é o normal; mas o bom profissional nunca alcançará a excelência! Ser bom não é ser ótimo; ser ótimo é ir além da normalidade, do já posto, do já especificado como sendo o "único modo adequado de fazer e agir".

Penso em Einstein. Tivesse ele sido "normalizado" em sua ciência, não poderia ir além de Newton. Haveria de ficar nos limites da física clássica e aí não teríamos a Teoria da Relatividade. Todo sonho que seja digno desse nome tem algo de revolucionário, transgressor, porque sai do círculo de giz que desenharam como sendo o limite do possível.

Sonhar, meus caros, é se apoderar da realidade e superá-la. Sonhar não é negar que há limites, mas saber que eles poderão estar mais além do óbvio, do já posto, do já dito!

Quero sonhar os meus sonhos até o seu limite extremo. Porque viver é risco; sonhar é arriscado demais! Quem sonha não se acomoda à realidade, não se aninha em suas franjas, não se permite emascular de antemão. Quem sonha respira a vida pulsando, mergulha nas suas entranhas, transforma os medos sinais de alerta, apenas para estimular a descoberta da justa medida.

E a justa medida não está predisposta em uma bula de remédio, em uma receita de bolo, em um mapa da vida adrede preparado. A justa medida, afinal, é simplesmente a nossa certeza da finitude, da construção passo a passo, do que é existenciário naquilo que Heidegger soube especificar em uma expressão riquíssima: o ser-aí (Dasein). A nossa finitude, o nosso ser-para-a-morte, a nossa existência com limites passa a ser, então, a nossa grande fronteira e a nossa grande motivação: viver é desde já sonhar e ir além, sem perder de vista as nossas circunstâncias e as nossas limitações. É ir para além de nós em busca da nossa felicidade.

Completo amanhã 42 anos! Olho para a minha vida e me orgulho justamente dos momentos em que me permiti sonhar. Orgulho-me dos momentos em que não me deixei dominar pela realidade, em que percebi que ficar preso a ela me tornaria solvente apenas com a mediocridade! Sim, a realidade é a desculpa dos que se aprisionam ao medo! A realidade é conservadora: ela funciona como uma lei da gravidade irrevogável, nos dizendo sempre: "não dê salto nenhum porque você deverá cair de volta!".

Nesses 42 anos, o que há de melhor em mim brotou dos meus sonhos, muitas vezes inesperados, muitas vezes difíceis, mais da vez provocativos. Sim, porque sonhar não é viver um prazer antecipado; sonhar é construir com as mãos a realidade que se quer viver!

‎"Eu não posso!"; "eu não consigo!"; 'é difícil demais para mim!". Muitas vezes nos deparamos com situações na vida em que a vontade que temos é dizer para nós mesmos: "Não dá!". Entre a realidade e o sonho, abrimos mão de sonhar simplesmente porque abdicamos de tentar. Tentar é já e sempre comprometer-se sinceramente com o sonho, ainda que ele seja tão difícil que não possa ser alcançado.

O alpinista que sonha em escalar o Everest só será feliz se ao menos iniciar a subida até o limite das suas forças. Ele até poderá não chegar ao topo, mas dirá para si mesmo"Eu tentei!; eu lutei!". A maior frustração não é não ter alcançado ou conseguido; a frustração que mutila é a de nem ter tentado, nem ter experimentado o insucesso.

O insucesso faz parte da vida. A dor, o sofrimento, a angústia, enfim, são circunstâncias presentes em nós. Ninguém pode sempre vencer, ter sucesso, estar acima das dores do mundo. A diferença essencial da verdadeira paz, da verdadeira felicidade, está na livre disposição do espírito para TENTAR, para LUTAR. Vencer ou perder é da vida. Muitos sonhos se realizaram plenamente a partir da derrota, da experiência acumulada. O genial Pelé da Copa de 70 só foi possível porque houve o esmagado Pelé da Copa de 66.

Esse é o ponto fundamental: devemos abrir mão da vida e dos sonhos por medo de tentar, de lutar? Do alto dos meus 42 anos, respondo: não! A vida é um dom de Deus caro demais, bonito demais, para que simplesmente nos acovardemos e tenhamos um medo corrosivo que nos freia e domina.

Como disse João Paulo II, citando Cristo: "Non abbiate paura!"

domingo, 21 de agosto de 2011

Romero Vieira Belo: 'Denúncia contra Adriano Soares'

Agradeço ao jornalista, que não conheço pessoalmente, pelo texto publicado abaixo (original pode ser lido aqui), em itálico:

Plenário do Supremo Tribunal Federal. Em julgamento, a validade imediata da Lei da Ficha Limpa. Os ministros analisaram, dissecaram, contestaram e defenderam a lei aprovada para banir do cenário público os políticos em débito com a Justiça. Durante o debate que se seguiu, confrontando luminares do Direito, ninguém, nenhum jurista foi tão citado quanto o alagoano Adriano Soares, advogado de renome, jurista consagrado, autor de livros invocados pelas maiores autoridades do Direito nacional.

Antes de se dedicar à advocacia, Adriano Soares foi juiz. Magistrado com méritos, concursado. Para alguns raros, entretanto, ser juiz é pouco. Atuação adstrita, terreno limitado. Então, para esses, impõe-se recorrer ao exercício da advocacia onde o universo, como diria Einstein, é finito, mas ilimitado. Com uma bagagem invejável, poderia estar atuando em São Paulo, Rio de Janeiro ou Brasília, a exemplo do também alagoano Nabor Bulhões. Preferiu, porém, permanecer aqui, ensinando, doutrinando, formando.

E eis que, nos últimos meses, Adriano Soares aparece como figura central de uma ação intentada por uma promotora de Rio Largo. O motivo: um contrato de seu escritório com a prefeitura do vizinho município. A promotora viu ‘irregularidade’ na ausência de licitação, algo que, como afirma o próprio Adriano, carece ainda de definição legal. A lei 8.666 é concessiva quando se trata de contratação de serviço caracterizado por notória especialização. Não seria o caso de uma banca de advogados especializados?

No cenário ainda turvo, chama a atenção uma circunstância: o Ministério Público ‘flagrou’ irregularidade no contrato de Adriano Soares, mas nada viu em outros contratos do gênero envolvendo figuras respeitáveis da advocacia estadual, a exemplo do mestre Marcelo Teixeira. Qual o cerne da questão? Os valores contratados? Ora, nesse e em todos os casos, vai prevalecer, sempre, a qualidade do serviço prestado. Pois – imperioso ressaltar – numa única ação, o escritório de Adriano Soares resgatou R$ 4 milhões devidos à prefeitura de Rio Largo. Não seria o caso de aplaudi-lo, todos que respeitam e defendem o Erário, incluindo o Ministério Público? Dinheiro público, dinheiro do povo, produto de impostos exorbitantes, salvo por um escritório de advocacia.

Como existem médicos e médicos, engenheiros e engenheiros – também existem advogados e advogados. Quanto vale uma ação bem impetrada, vitoriosa? Depende do que está em jogo. Então, quanto vale o trabalho de um escritório que resgata R$ 4 milhões a favor de uma prefeitura num único processo? Informou-se que a banca de Adriano foi contratada por R$ 15 mil mensais. Muito dinheiro? Uma fortuna? Muito dinheiro para um escritório assistido por mais de 30 profissionais, todos qualificados?

Também chamou a atenção a revelação de que a promotora teria sofrido ameaças por telefone. Ficou clara, cristalina, a intenção de associar a denúncia à pessoa de Adriano Soares. Feita nesse momento, dentro de um contexto envolvendo o advogado, o intento não poderia ser outro. E com sutileza, já que, para se preservar de uma interpelação – e talvez orientada nesse sentido – a autora não fez uma acusação direta. Simplesmente, deixou no ar...

Mas – estupefação geral – Adriano Soares, o mestre do Direito, fazendo juras, engendrando ameaças sob a proteção do anonimato telefônico? Um advogado de sua estatura, brincando de aterrorizar? Pegou mal. Não tanto por visar expor um homem avesso à violência, de passado exemplar, mas, sobretudo, pela forma oblíqua de uma denúncia sem alvo. Duas questões: 1 - teriam, mesmo, ocorrido as ameaças? 2 – Em caso afirmativo, não teria sido um (outro) inimigo da promotora? Como saber-se, se nem mesmo ela soube, já que, por óbvios motivos, não dirigiu sua imputação a Adriano?

O Ministério Público, convém anotar, não errou nem se excedeu ao reunir-se em apoio a sua representante, nada obstante o tenha feito por puro corporativismo, desde que não tinha, quando da demonstração, o desfecho do caso que lhe motivara a iniciativa. A OAB, aliás, poderia fazer o mesmo, reunindo algumas centenas de advogados solidários com Adriano Soares e seus assistentes. Desnecessário, no entanto. Mais prudente – e normal – aguardar o pronunciamento final da Justiça. São ações contra o advogado e contra a promotora. O estampido ecoado na mídia é só fogo de artifício realçado pelo reflexo luzente do mestre. Ruidoso, apenas, pela estatura de um advogado celebrado no país inteiro.

Nesse episódio em especial, Adriano Soares não necessita de defensores. Mas urge reconhecer: um advogado de seu gabarito não precisa recorrer a falcatruas para ganhar dinheiro. Nem, menos ainda, de intimidar pessoas ao telefone. É, sim, um lutador aguerrido, decidido, mas o palco de suas lutas têm sido os tribunais, e não aparelhos celulares de origem e números desconhecidos.

Célio Gomes, a Gazeta e os ataques sistemáticos como método

Não é de hoje que a Gazeta de Alagoas me ataca. Na seção Fatos e Notícias, não raro são publicadas notas desrespeitosas, sempre com agressões pessoais injustificáveis. Coluna apócrifa, embora sob a resposanbilidade do seu editor-geral, Célio Gomes, "Fatos e Notícias" passou a ser instrumento de constantes ataques, os mais despropositados, revelando o ânimo do editor desde que, quando secretário da Gestão Pública, passei a simplesmente responder matérias inverídicas publicadas. Aliás, o que mais o irritou foi quando respondi objetivamente a uma matéria tendenciosa de um dos seus pupilos (vide aqui). Desde então, Célio Gomes vem utilizando os espaços que dispõe para tentar me atingir e desconstruir.

A matéria do jornal Gazeta de Alagoas de hoje, replicada no blog do seu editor-chefe (aqui), é uma continuidade nesse método nocivo de fazer jornalismo, cuja pistolagem da honra alheia é a finalidade principal. Quem não se submete é alvejado, muitas vezes de maneira torpe.

O blog, em sua chamada, tenta me ligar a SUPOSTAS ameaças sofridas por uma promotora pública em Rio Largo. Ameaças que teriam sido feitas há um ano, no São João do ano passado, segundo narra o jornal Gazeta de Alagoas, embora tais supostas ameaças sequer tenham sido atribuídas a mim por aquela que se diz ameaçada. Quem as atribui é o jornal Gazeta de Alagoas e, agora, subliminarmente, o blogueiro Célio Gomes, editor daquele periódico, em uma chamada que liga o meu nome à improbidade administrativa e a ameaças.

Claro, ambos (Gazeta e blogueiro) responderão na Justiça por isso, como deve ser em casos dessa natureza. É que o Poder Judiciário é o caminho para restabelecer a verdade quando ela é deturpada ou destruída, mesmo por órgãos de comunicação social. E, aqui, não se trata de uma ameaça, como gostam de rotular os que tentam se passar falsamente por vítimas em casos que tais, mas uma garantia constitucionalmente estabelecida a todos os cidadãos que tenham a sua imagem injustamente depredada por quem deveria ter a responsabilidade de noticiar e não caluniar.

Não comecei a minha história de vida agora. Desde os 23 anos estou na vida pública. Não será a sanha de um jornal que poderá reescrever a minha história de vida, associando-me com qualquer forma de violência. Uma mentira criada pelo jornal, que responderá pelas suas insinuações caluniosas e falsas.

Discordei, sim, da atuação da promotora de Rio Largo. Não porque tivesse ela proposto a ação civil pública contra 5 escritórios de advocacia que prestavam serviços ao Município de Rio Largo na gestão da prefeita Vânia Paiva, mas, sim, porque deixou de atuar do mesmo modo contra OS MESMOS CONTRATOS assinados pelo Prefeito Toninho Lins, com um agravante: (a) os contratos da gestão passada estavam extintos, enquanto os da gestão atual estavam em vigor; e (b) fora o Prefeito Toninho Lins, quando vereador em 2007, que fizera acusação contra esses contratos à promotora da comarca, mas não teve ele dúvidas em celebrar iguaizinhos quando foi eleito prefeito de Rio Largo. Qual a minha crítica? Não pode haver (suposto) combate à corrupção pela metade. Não pode haver acepção de pessoas. O princípio da impessoalidade exige tratamento isômico, o princípio da eficiência exige tratamento expedito e o princípio da obrigatoriedade impede que o uso discricionário dos remédios jurídicos seja um escudo para o agente público.

Se legitimamente questiono a atuação de um agente público, devo, não por "retaliação", mas por garantia constitucional exercer o meu direito de representação, para que o Ministério Público, através das instâncias próprias, possa analisar e decidir livremente sobre a matéria interna. Se a decisão for diversa do que se espera, para isso existe o Poder Judiciário. Ou seja, é dentro da institucionalidade que se resolvem pendências desse tipo, não através de supostas ameaças covardes e inúteis. Ameaça anônima é expediente de gente covarde, que não tem coragem de agir de cara limpa. Esse, por certo, nunca foi o meu perfil!

Respeito demasiadamente o Ministério Público. Tanto isso é verdade, que antes de agir perante o Poder Judiciário, fiz a representação aos próprios órgãos internos da instituição. Não fiz por terceiros: fizemos nós, às claras, que fazemos o escritório Motta e Soares, que tem atuação nacional e é respeitado aqui e fora do Estado.

Não há um confronto meu com o Ministério Público, como sordidamente tenta inferir o Jornal Gazeta de Alagoas, sem que nem o Procurador Geral de Justiça nem o Corregedor Geral nem a presidente da AMPAL (Associação do Ministério Público) tenham afirmado isso. NINGUÉM, NENHUMA AUTORIDADE, afirmou que a ida de membros do Ministério Público a Rio Largo tenha sido um desagravo contra atos meus. É ilação da Gazeta de Alagoas, no seu método de fazer pistolagem contra a honra alheia.

Como cidadão e como advogado não tenho o direito de temer o enfrentamento legítimo contra quem quer que seja, dentro das normas jurídicas e da normalidade institucional. Para isso existe a Constituição Federal. Não há ninguém acima da lei, nem o secretário de Estado, nem o juiz de Direito, nem o membro do Ministério Público, nem os advogados, nem os jornalistas... E, nesse sentido, não me quedo a uma reportagem criminosa, que tenta enganar o leitor criando um embate que não existe entre mim e o Ministério Público. Tampouco me quedo a essa tentativa mesquinha de desconstrução, em que a Gazeta de Alagoas tenta me fazer uma pessoa ligada ao que sou absolutamente contrário: à violência.

Célio Gomes terá a oportunidade de me olhar nos olhos em juízo. Lá, no Poder Judiciário, nos conheceremos pessoalmente e poderemos aquilatar o tamanho moral de cada um. Mas que fique claro aos leitores da Gazeta: os ataques continuarão como método. Mas ela tem patrimônio para me pagar cada ataque e cada agressão feita.

Pronto, Célio Gomes!, agora você passa a saber como eu ajo: é como homem de caráter, dizendo as coisas às claras, sem me esconder em colunas apócrifas ou em telefonemas anônimos ameaçadores. E quando me sinto atigindo, vou ao lugar adequado para restituir os meus direitos: ao Poder Juciário, onde nos encontraremos a breve trecho, diante da Constituição Federal e da Justiça. A única arma que levo é a que anda comigo desde criança: a minha consciência!

Crônica da semana: A camisa vermelha e os livros

Estava angustiado. Sentei-me no batente do prédio João de Deus, onde funcionava o curso de Direito. Era formado por duas estruturas cumpridas de salas de aula, uma frente a outra, separadas por um espaço de barro, sem jardim. Calça jeans desbotada, camisa vermelha puída, com um pequeno furo no ombro, feito por uma traça atrevida. Lembro bem daquela camisa, que usava em casa e vesti para ir à faculdade sem atenção. Era o jeito desleixado como frequentávamos as aulas, comum em quase todos nós estudantes naquele tempo.

Estava com alguns livros à mão. Livros que não estava lendo, porque estava fazendo o curso sem apetite, sem gostar muito das disciplinas. Aliás, assistir as aulas era um exercício sofrido, porque as únicas disciplinas que me interessavam eram estranhas ao Direito, como as ótimas aulas de Sociologia Geral, que me instigavam muito. Fora disso, sentia-me estimulado apenas pelas aulas de Teoria Geral do Direito, ensinadas pelo Prof. Marcos Bernardes de Mello, mas que eu havia perdido boa parte das iniciais, em razão de faltas minhas. Passou a ser difícil acompanhá-lo depois disso, porque não lia em casa e não entendia patavinas do que ele estava ensinando. Não estava sendo um bom aluno e passei nas matérias com alguma dificuldade.

Naquela manhã, bateu-me uma angústia profunda. Não sei por que me vinham aquelas questões sofridas: o que farei quando sair daqui formado?, será que sairei com alguma condição de advogar?, como será a minha vida profissional? Eram perguntas dolorosas, que me açoitavam a alma e sufocavam o peito. Sentia o peso da responsabilidade nos ombros, a incerteza do futuro e me afundava nas minhas dúvidas sobre a própria vocação.

Sim, eu nem sabia para que prestaria o vestibular quando fazia o científico (ensino médio) no Marista. No terceiro ano, angustiava-me a alma quando via os colegas falando que fariam medicina, engenharia, informática, ou sei-lá-o-quê e eu não tinha a mínima ideia do que faria. Quando me perguntavam, à falta de uma resposta, dizia que faria economia ou jornalismo. Foi vivendo essa dúvida que, sentado na calçada da minha casa, olhando as estrelas, cheio de ansiedade, a Dona Idelva Pinto, nossa vizinha, perguntou-me sobre o vestibular e me sugeriu prestar para Direito. Direito? "Sim, você gosta de ler, gosta de falar muito, é um curso que possibilita muitas carreiras...". E, naquela noite, ouvindo uma procuradora do Estado, decidi fazer aquele curso, que nem sabia ao certo para o que servia.

Agora, estava ali, no alpendre do João de Deus, na Ufal, com renovadas angústias, perdido, com medo do futuro, incerto da minha vocação, perdido na minha apatia. Olhava para o barro molhado em que acomodava os pés, o céu cinza da chuva da madrugada, os alunos passando, rindo, conversando... E eu ali, sofrendo os meus medos e todas as minhas dúvidas.

E, de repente, deu-me um "insight". Uma lanterna alumiou a minha alma. Uma vontade de vencer, de sair daquela letargia que consumia os meus sonhos todos, uma necessidade existencial de sair correndo dali, recuperando o tempo perdido, os livros não lidos, as aulas cabuladas. Uma sede de viver que não compreendia, mas que me tomava ali, naquele momento, com aquela camisa vermelha surrada pelo uso, esgarçada na gola circular... Nunca a esqueci e me arrependo de não tê-la guardado como memorial desse dia, desse momento único.

Levantei-me, meu coração batia forte, havia uma fome imensa em mim; queria sair dali, queria estudar, queria ler tudo o que havia desprezado. E foi assim que comecei a me dedicar à leitura da "Teoria do Fato Jurídico", de Marcos Bernardes de Mello, introdutório à obra que me marcou toda formação profissional e o meus estudos: o "Tratado de Direito Privado" de Pontes de Miranda. Foi a obra de Pontes de Miranda que me deu a vocação para o Direito e me salvou da angústia de não ter referências. Foi o desafio de compreender o pensamento pontesiano, de estudar sozinho a sua obra monumental "Tratado das Ações", que me fez ter sempre uma motivação diária de estudar, de me dedicar, de me realizar intelectualmente.

Aquele dia, na solidão da minha angústia, brotou uma fome intelectual que me persegue todos os dias, que me motiva, que encanta. Sem os livros, sem as leituras, sinto-me sem bússola. A leitura passou a ser um prazer, uma busca, uma ponte para os horizontes distantes. Sim, os livros salvaram a minha vida da perda de objetivos, do medo do futuro, da passividade mórbida. Eles, os livros, me ensinam o valor da reflexão, do esforço constante, da dedicação, da profundidade. Nada vem de graça, não existe quem já nasça sabendo tudo: somos, afinal, produtos do nosso esforço, das horas gastas com o que nos aprimora.

Hoje, acordei com uma chuva suave. Olhando para o céu cinza, lembrei-me daquela camisa vermelha. Escrevo aqui, cercado de livros, sentindo-me bem entre eles, que sempre foram companheiros de caminhada.