domingo, 21 de agosto de 2011

Crônica da semana: A camisa vermelha e os livros

Estava angustiado. Sentei-me no batente do prédio João de Deus, onde funcionava o curso de Direito. Era formado por duas estruturas cumpridas de salas de aula, uma frente a outra, separadas por um espaço de barro, sem jardim. Calça jeans desbotada, camisa vermelha puída, com um pequeno furo no ombro, feito por uma traça atrevida. Lembro bem daquela camisa, que usava em casa e vesti para ir à faculdade sem atenção. Era o jeito desleixado como frequentávamos as aulas, comum em quase todos nós estudantes naquele tempo.

Estava com alguns livros à mão. Livros que não estava lendo, porque estava fazendo o curso sem apetite, sem gostar muito das disciplinas. Aliás, assistir as aulas era um exercício sofrido, porque as únicas disciplinas que me interessavam eram estranhas ao Direito, como as ótimas aulas de Sociologia Geral, que me instigavam muito. Fora disso, sentia-me estimulado apenas pelas aulas de Teoria Geral do Direito, ensinadas pelo Prof. Marcos Bernardes de Mello, mas que eu havia perdido boa parte das iniciais, em razão de faltas minhas. Passou a ser difícil acompanhá-lo depois disso, porque não lia em casa e não entendia patavinas do que ele estava ensinando. Não estava sendo um bom aluno e passei nas matérias com alguma dificuldade.

Naquela manhã, bateu-me uma angústia profunda. Não sei por que me vinham aquelas questões sofridas: o que farei quando sair daqui formado?, será que sairei com alguma condição de advogar?, como será a minha vida profissional? Eram perguntas dolorosas, que me açoitavam a alma e sufocavam o peito. Sentia o peso da responsabilidade nos ombros, a incerteza do futuro e me afundava nas minhas dúvidas sobre a própria vocação.

Sim, eu nem sabia para que prestaria o vestibular quando fazia o científico (ensino médio) no Marista. No terceiro ano, angustiava-me a alma quando via os colegas falando que fariam medicina, engenharia, informática, ou sei-lá-o-quê e eu não tinha a mínima ideia do que faria. Quando me perguntavam, à falta de uma resposta, dizia que faria economia ou jornalismo. Foi vivendo essa dúvida que, sentado na calçada da minha casa, olhando as estrelas, cheio de ansiedade, a Dona Idelva Pinto, nossa vizinha, perguntou-me sobre o vestibular e me sugeriu prestar para Direito. Direito? "Sim, você gosta de ler, gosta de falar muito, é um curso que possibilita muitas carreiras...". E, naquela noite, ouvindo uma procuradora do Estado, decidi fazer aquele curso, que nem sabia ao certo para o que servia.

Agora, estava ali, no alpendre do João de Deus, na Ufal, com renovadas angústias, perdido, com medo do futuro, incerto da minha vocação, perdido na minha apatia. Olhava para o barro molhado em que acomodava os pés, o céu cinza da chuva da madrugada, os alunos passando, rindo, conversando... E eu ali, sofrendo os meus medos e todas as minhas dúvidas.

E, de repente, deu-me um "insight". Uma lanterna alumiou a minha alma. Uma vontade de vencer, de sair daquela letargia que consumia os meus sonhos todos, uma necessidade existencial de sair correndo dali, recuperando o tempo perdido, os livros não lidos, as aulas cabuladas. Uma sede de viver que não compreendia, mas que me tomava ali, naquele momento, com aquela camisa vermelha surrada pelo uso, esgarçada na gola circular... Nunca a esqueci e me arrependo de não tê-la guardado como memorial desse dia, desse momento único.

Levantei-me, meu coração batia forte, havia uma fome imensa em mim; queria sair dali, queria estudar, queria ler tudo o que havia desprezado. E foi assim que comecei a me dedicar à leitura da "Teoria do Fato Jurídico", de Marcos Bernardes de Mello, introdutório à obra que me marcou toda formação profissional e o meus estudos: o "Tratado de Direito Privado" de Pontes de Miranda. Foi a obra de Pontes de Miranda que me deu a vocação para o Direito e me salvou da angústia de não ter referências. Foi o desafio de compreender o pensamento pontesiano, de estudar sozinho a sua obra monumental "Tratado das Ações", que me fez ter sempre uma motivação diária de estudar, de me dedicar, de me realizar intelectualmente.

Aquele dia, na solidão da minha angústia, brotou uma fome intelectual que me persegue todos os dias, que me motiva, que encanta. Sem os livros, sem as leituras, sinto-me sem bússola. A leitura passou a ser um prazer, uma busca, uma ponte para os horizontes distantes. Sim, os livros salvaram a minha vida da perda de objetivos, do medo do futuro, da passividade mórbida. Eles, os livros, me ensinam o valor da reflexão, do esforço constante, da dedicação, da profundidade. Nada vem de graça, não existe quem já nasça sabendo tudo: somos, afinal, produtos do nosso esforço, das horas gastas com o que nos aprimora.

Hoje, acordei com uma chuva suave. Olhando para o céu cinza, lembrei-me daquela camisa vermelha. Escrevo aqui, cercado de livros, sentindo-me bem entre eles, que sempre foram companheiros de caminhada.

Um comentário:

  1. Certa vez, nos corredores da Faculdade, passei com o Tratado de Direito Privado em mãos quando um colega me perguntou: você vai estudar direito civil para as provas do Cespe com esse livro? Minha reação foi automática: - claro que não! Então ele disse: é... pois vc não ganharia nada lendo esse livro. Pensei: mas eu não preciso ganhar mais nada além do prazer de ler e entender (essa é a melhor parte) Pontes de Miranda.

    Hoje (já se passaram dois anos), a necessidade me faz deixar Pontes de lado. O prazer cedeu lugar à obrigação de ler aquilo (e somente aquilo) que é essencial. Os concursos estão aí, e novos Juízes de Direito, Juízes Federais, Promotores de Justiça, Procuradores de Estado e da Fazenda, inclusive aquele colega, estão sempre em busca do "fast food" do direito, com a mesma desculpa: Dr., é muita coisa para agente estudar.

    Encontrei no direito tributário (e em que procuro me especializar) uma forma de escapar da ausência de debate, pedindo ao juiz uma decisão fundamentada não apenas numa súmula ou num acórdão do STJ/STF. E veja só: uma publicitária especializada em escritórios de advocacia disse em um artigo publicado nessas revistas jurídicas: "hoje, poucos podem se dar ao luxo de serem advogados pareceristas".

    Lendo essa crônica, me bateu uma crise existencial: advogado, ou Advogado, eis a questão.

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