Há dois textos meus sobre o sequestro e morte de Eloá, em Santo André, por um jovem atormentado pelo amor (por ela) e a rejeição (dela para ele). Lindemberg chocou o país com o sequestro da sua ex-namorada e, depois, com o tiro que lhe roubou a vida. O amor do outro que esmigalhou o amor por si mesmo, ao ponto limite de expor publicamente as suas víceras, naquilo que Milan Kundera (em "A Insustentável Leveza do Ser") tão bem definira como sendo "vertigem". O texto integral pode ser lido nesse link (http://migre.me/6c5kv).
Há uma passagem que reproduzo aqui:
O amor de si não exclue o amor pelo outro; o pressupõe. A admiração pelo talento alheio necessita, para ser sadio, da convicção sobre os próprios talentos, porque senão o reconhecimento vira ressentimento e inveja. Com essa afirmação, podemos entender a loucura de Lindemberg, o seqüestrador de Santo André: ele aprisionou Eloá e depois a matou porque não se amava o suficiente, ao ponto da admiração e da necessidade do amor dela por ele esmagá-lo. O sentimento de rejeição decorre de ressentimento: será que ela encontrou alguém melhor do que eu? Será que eu sou insuficiente para ela? Ora, como lhe falta orgulho por carecer de amor próprio, restou-lhe a vertigem, no sentido empregado por Kundera. De fato, em "A insustentável leveza do ser", Milan Kundera descreve de um modo único o sentimento de vertigem. Diz ele, em seu primoroso romance:
"O que é vertigem? Medo de cair? Mas porque temos vertigem num mirante cercado por uma balaustra sólida? Vertigem não é o medo de cair, é outra coisa. É a voz do vazio debaixo de nós, que nos atrae e nos envolve, é o desejo da queda do qual nos defendemos aterrorizados."
Noutra passagem, ainda mais rica, fala-nos de modo mais genuíno e profundo:
"Era a vertigem. Um atordoamento, um insuportável desejo de cair. Eu poderia dizer que a vertigem é a embriaguez causada pela nossa própria fraqueza. Temos consciência dessa fraqueza mas não queremos resistir a ela e nos abandonar. Embriagamo-nos com ela, queremos ser mais fracos ainda, queremos desabar em plena rua, à vista de todos, queremos estar no chão, ainda mais baixo que o chão."
O amor frustrado, ferido, muitas vezes nos leva a essa necessidade do abismo; é o orgulho extremado fazendo-se escravo de feridas fundas.
Talvez Friedrich Nietszche tenha traduzido muito bem aquele conceito de VERTIGEM de Kundera em uma das suas frases lapidares: "Quem combate monstruosidades deve cuidar para que não se torne um monstro. E se você olhar longamente para um abismo, o abismo também olha para dentro de você” (in Para Além do Bem e do Mal).
Faço essas reflexões sob o impacto da leitura que RENÉ GIRARD fez das obras, da vida e do pensamento de Fiódor Dostoiévski. Trata-se do livro DOSTOIÉVSKI: DO DUPLO À UNIDADE, da editora É Realizações. Indico essa obra. E faço aqui as suas anotações sobre o orgulho, que bem poderia ser aplicado a Lindemberg como aos que sofreram a frustação no amor e reagiram de um modo "vertiginoso". Cada dia me encanto mais com Dostoiévski.
Quem se fere no amor e tem uma autoestima mal-resolvida, como Lindemberg, termina escravo do seu orgulho ferido e, pior, passa a viver um processo masoquista. O orgulho excessivo do amante frustrado leva ao masoquismo, afinal: "O masoquista não pode encontrar sua própria estima senão por uma vitória escandalosa sobre o ser que o ofendeu; mas esse ser adquire, a seus olhos, dimensões tão fabulosas que lhe parece igualmente o único capaz de obter essa vitória. Há, no masoquismo, uma espécie de miopia existencial que limita a visão do ofendido à pessoa do ofensor. É este quem define não apenas o objetivo do ofendido mas também os instrumentos de sua ação... O ofendido é condenado a errar indefinidamente em torno do ofensor, a reproduzir as condições da ofensa e a fazer-se novamente ofender"(p.41).
E por que o orgulhoso que teve a frustração no amor se deixa cair assim nessa situação masoquista humilhante, vivendo publicamente a sua vertigem? Renè Girard responde com a análise da obra "O Eterno Marido" de Dostoiévski: "Por que ele se precipita assim na humilhação? Porque é imensamente vaidoso e orgulhoso. A resposta é paradoxal apenas na aparência. Quando Trussótzki descobreque sua mulher prefere outro, o choque que sofre é terrível, pois ele se impusera a tarefa de ser o centro e o umbigo do universo... é incapaz de considerar um meio-termo entre dois extremos; o menor fracasso condena-o portanto à servidão... Depois de se ter concebido como um ser de que irradiavam naturalmente a força e o sucesso, ele se vê como um dejeto e daí seguem-se inevitavelmente a impotência e o ridículo". (p.42-43 da obra de Girard).
A vertigem, desenhada por Kundera, revela-se em Dostoiévski de um modo ainda mais vincada: é o orgulho ferido que passa a ser masoquista e humilhado, em um ciclo vicioso e doentio. Tão cioso de si, não soube suportar a desilusão, perdendo-se de si mesmo por perder a autoconfiança e a própria autoestima.
É engraçado - para não dizer trágico! - que pessoas que passam por esse processo, como Lindemberg (aqui, nesse caso, no limite extremo da perda de sentido e na necessidade de destruir o objeto do seu amor), mostram-se orgulhosos, imaginam estar atacando o seu ofensor quando, na verdade, apenas se subjugam mais, mostram-se escravizados pelo orgulho ferido e pela dor. Humilham-se achando estar humilhando; cedem a sua liberdade, proclamando estar livre. Ou seja, passam a viver a patologia de um sentimento frustrado e masoquista.
Todo esse misto de orgulho e humilhação é exposto em uma passagem clássica do livro de Dostoiévski "O Duplo", que sequer está entre as suas obras geniais. O personagem Goliádkin leva esse orgulho ferido ao extremo, àquela vertigem kunderiana, ao abismo nietszcheano, ao dizer: "Quanto a mim, o que tenho feito em minha vida é levar até o fim aquilo que vocês não ousam levar nem até à metade, sempre denominando sua covardia de sabedoria, consolando-se assim com mentiras. Se bem que eu talvez esteja bem mais vivo que vocês".
Para Renè Girard (p.55), essa coisa que Goliádkin LEVA ATÉ O FIM é o orgulho. É essa catarse pública que é a vertigem, levada ao extremo. E o orgulho ferido, digo eu, termina suscitando sempre a autopiedade, essa execração pública de si mesmo, expondo as dores para além do limite do pudor suscitado pelo amor próprio.
Dostoiévski - essa a sua genialidade - nos leva para esses labirintos da psique humana, essas perdas de referências claras causadas pelas frustrações, pelo orgulho inflado e imaturo que não se aceita ferido. E nada há de mais doloroso do que autopiedade do orgulho frustrado, que há de se expor no vazio de si mesmo,na sua falta de capacidade de lidar com o insucesso, com as perdas, com as feridas da vida.
O amor pressupõe o amor próprio íntegro, maduro, equilibrado. A desordem do amor próprio leva ao masoquismo e à humilhação (pior, a humilhação que sequer se reconhece e sabe se vê como tal!). O amor autêntico e maduro é orgulhoso apenas na medida em que preserva o EU para, inteiro, aventurar-se na aventura do OUTRO. O orgulho, afinal, que conta é o orgulho suave que faz sadia a relação EU-TU, sem se perca nunca os termos da relação e a importância dessa polaridade.
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