Um dos grandes movimentos da filosofia ocidental decorreu da descoberta do papel central da linguagem não apenas como instrumento para a comunicação, mas sobretudo como sendo ela a própria realidade. Heidegger cunhou frase lapidar: "Ser que pode ser compreendido é linguagem".
A linguagem, portanto, deixaria de ser o "medium" para ser, ela própria, a realidade. O que vem pela linguagem existe; sobre o que não se pode falar, ou não existe ou é o inefável, como sustentara o primeiro Wittgenstein, já no fecho do "Tratactus logico-philosophicus".
Uma das dimensões fundamentais da linguagem é pragmática. Enquanto a semântica se atém à relação entre o signo e a coisa por ele designado e a sintaxe se prende à relação dos signos consigo mesmo na estrutura expressional, cuida a pragmática da relação dialógica dos atos de fala. A linguagem é uma realidade intersubjetiva, comunitária. Não há linguagem privada; o falar e o pensar ocorre sempre em um processo dialógico, através de uma gramática comum à comunidade do discurso.
Todas as principais experiências humanas reclamam uma expressão em linguagem: o amor, a fé, o desejo, a dor, o sofrimento, a saudade, a alegria... Tudo em nós reclama a expressão, o sair de si mesmo e se fazer compreensível ao outro. Estamos e somos sempre em um profundo e indefectível processo de diálogo: eu-eu, eu-tu, eu-nós.
A fé cristã, por exemplo, desde o seu nascedouro foi comunitária. Após a morte de Cristo, fato histórico que ninguém seriamente duvida - é certo que há sempre uns tolos que ganham dinheiro criando teorias bobas para negar um evento que marcou a história da humanidade -, restavam alguns poucos discípulos seus medrosos e acovardados. Pescadores, homens de pouca cultura e sem prestígio social, foram perseguidos pelos judeus e pelos romanos.
Algo de extraordinário ocorreu. Aqueles homens de nenhum relevo começaram a anunciar um evento sem provas: o Cristo morto havia ressuscitado! A morte fora vencida por ele; a boa nova era justamente um escândalo para os judeus (autoridade religiosa) e uma loucura para os gregos (autoridade intelectual), no dizer preciso de São Paulo. E o anúncio foi marcado pela superação do medo, pelo corajoso enfrentamento e martírio. Pentecostes é esse marco: os homens medrosos saem dos esconderijos e anunciam a ressurreição.
E, desde ali, a fé passou a ser não uma viagem individual, uma experiência pessoal exclusiva. A fé cristã é uma experiência comunitária. NÓS CREMOS, dizem os cristãos desde os primórdios. Crer, ter fé, para os cristãos, por conseguinte, é uma experiência pragmática (no sentido linguístico), em que EU ME INSIRO NUMA VERDADE REVELADA E VIVIDA PELOS QUE CREEM. A fé em Cristo é a fé em uma pessoa encarnada, em uma verdade que se põe para mim de fora para dentro e me invade, me toma, me domina.
A fé não é, portanto, a MINHA FÉ, mas a FÉ DOS CRISTÃOS. A fé não se amolda aos meus pensamentos, não sou nem posso ser seu dono ou proprietário. A fé é uma realidade comunitária, na qual me insiro e me descubro como pessoa e como crente. A fé, então, é uma adesão livre e consciente, apaixonada, mas sempre uma adesão.
Os orientais buscam sempre um outro caminho. A verdade seria sempre uma experiência interna, uma busca em si mesmo. Nós seríamos parte de um todo, do deus que habita em mim e para o qual eu retorno após a morte, me dessubjetivando. Ser feliz seria cada vez mais abrir mão de si mesmo, em um processo de autonegação. E esse processo seria uma viagem interna, uma busca por si mesmo em um processo de abandono do self, do ego.
O pensamento, expressão da linguagem que define o nosso mundo e o nosso ser no mundo, seria um mal a ser deixado de lado. Nosso processo de autonegação implicaria a libertação da mente do próprio ato de pensar. Como disse um guru respeitado nos dias de hoje, com seguidores no Brasil, Jiddu Krishnamurti (+ 1986): "Meditação é libertar a mente de toda desonestidade. O pensamento gera desonestidade. O pensamento, no seu esforço para ser honesto, é comparativo e, portanto, desonesto. (…) Meditação é o movimento dessa honestidade no silêncio".
Tomo ainda a fala de J. Krishnamurti como expressão dessa lógica de autonegação através de processos que visam, através da meditação, a busca do abandono de si mesmo, porque pelo abondono do self alcançaria o fluxo vital do qual faria parte e no qual devo me perder, como um Nirvana budista: "Eu aprenderei como estar quieto; aprenderei como meditar com o objetivo de ficar quieto. Eu vejo a importância de se ter uma mente que seja livre do tempo, livre do mecanismo do pensamento, eu a controlarei, a subjugarei, expulsarei o pensamento. Mas isto ainda é operação do pensamento. Isso está muito claro. Então o que ela deve fazer? Porque um ser humano vive nessa desarmonia, ele deve questionar isso. E isso é o que estamos fazendo. Como começamos a questionar isso, ou no questionar, chegamos a essa fonte. É ela uma percepção, um insight, e esse insight não tem nada, coisa alguma a ver com o pensamento? É o insight o resultado do pensamento? A conclusão de um insight é pensamento, mas o insight propriamente não é pensamento. Assim, eu obtive uma chave para isso. Então o que é insight? Posso convidá-lo, cultivá-lo? Isso é afeição, isso é amor. Quando você fala à minha consciência desperta, ela é dura, esperta, sutil, aguda. E você a penetra, penetra-a com seu ver, com sua afeição, com todo o sentimento que tem. Isso opera, nada mais."
E, adiante, ensina ele, completando a sua compreensão: "Não pode dividir a si mesma como "minha inteligência" e "sua inteligência". Ela é inteligência, não é divisível. Agora ela brotou de uma fonte de energia que dividiu a si mesma..." E segue: "Pensamento, matéria, o mecânico, é energia. Inteligência também é energia. O pensamento está confuso, poluído, dividindo a si mesmo, fragmentando a si mesmo. Portanto eu diria que o pensamento deve estar completamente quieto para o despertar da inteligência. Não pode haver um movimento de pensamento e ocorrer o despertar da inteligência."
Como se observa, há uma imensa diferença entre a fé cristã e o pensamento oriental "lato senso": os orientais negam a individualidade, negam o valor do eu e do pensamento, apontam para o TODO ASSUBJETIVADO como sendo a paz e o destino nosso; o cristão valoriza a subjetividade, a dimensão pessoal do homem, e aponta para a fé como como uma realidade intersubjetiva, em que aderimos a verdade do Cristo que se revela na história e nos convida para um diálogo de amor eterno.
O cristianismo valoriza a criação como um todo: a matéria e o espírito têm o mesmo valor como criação do amor de Deus. Ambos, fraturados pelo pecado, são restaurados pelo amor de Deus, que se esvazia, se encarna e assume a nossa história.
A nossa realização não vem da autonegação, mas da nossa afirmação pessoal e comunitária no amor de Deus. Meditar não é abandonar o pensamento, mas voltar o pensamento para Deus, em um ato de entrega e fé. Não preciso, para ser pleno, "esquecer ou abdicar" do mundo lá fora; a plenitude vem em um processo nunca acabado em nossa vida terrena, fraturada pelo pecado, que se realiza através da ressurreição individual. Ou seja, no cristianismo não me dissolvo em um Nirvana; me realizo em plenitude, em minha individualidade, na profunda relação de amor com Deus e com os demais, em um diálogo eterno e constante.
Ouvi com muita atenção as lições de J. Krishnamurti. Veja um dos seus vídeos mais abaixo. E ao ouvi-lo, vi um bom homem reflitindo, em voz pausada, sobre a negação do pensamento, do que somos em nossa constituição antropológica mais profunda. Segundo ele, como não há pensamento completo sobre nada, não se pode pensar na completude, nem o imensurável. Desse modo, Deus e as religiões seriam criações do pensamento, ideologias que levariam às guerras e à mentira.
Mesmo os relacionamentos mais fraternos seriam produtos do pensamento e levariam, também eles, ao conflito. O fundamental seria "romper com a cadeia da continuidade do ego. Só então é possível viver com outro sem uma sombra qualquer de conflito" (1:18:53 do vídeo). Só abrindo mão do eu que poderia estar sem conflito com o outro. Só na autonegação poderia me afirmar perante o outro sem conflito...
A linguagem, portanto, deixaria de ser o "medium" para ser, ela própria, a realidade. O que vem pela linguagem existe; sobre o que não se pode falar, ou não existe ou é o inefável, como sustentara o primeiro Wittgenstein, já no fecho do "Tratactus logico-philosophicus".
Uma das dimensões fundamentais da linguagem é pragmática. Enquanto a semântica se atém à relação entre o signo e a coisa por ele designado e a sintaxe se prende à relação dos signos consigo mesmo na estrutura expressional, cuida a pragmática da relação dialógica dos atos de fala. A linguagem é uma realidade intersubjetiva, comunitária. Não há linguagem privada; o falar e o pensar ocorre sempre em um processo dialógico, através de uma gramática comum à comunidade do discurso.
Todas as principais experiências humanas reclamam uma expressão em linguagem: o amor, a fé, o desejo, a dor, o sofrimento, a saudade, a alegria... Tudo em nós reclama a expressão, o sair de si mesmo e se fazer compreensível ao outro. Estamos e somos sempre em um profundo e indefectível processo de diálogo: eu-eu, eu-tu, eu-nós.
A fé cristã, por exemplo, desde o seu nascedouro foi comunitária. Após a morte de Cristo, fato histórico que ninguém seriamente duvida - é certo que há sempre uns tolos que ganham dinheiro criando teorias bobas para negar um evento que marcou a história da humanidade -, restavam alguns poucos discípulos seus medrosos e acovardados. Pescadores, homens de pouca cultura e sem prestígio social, foram perseguidos pelos judeus e pelos romanos.
Algo de extraordinário ocorreu. Aqueles homens de nenhum relevo começaram a anunciar um evento sem provas: o Cristo morto havia ressuscitado! A morte fora vencida por ele; a boa nova era justamente um escândalo para os judeus (autoridade religiosa) e uma loucura para os gregos (autoridade intelectual), no dizer preciso de São Paulo. E o anúncio foi marcado pela superação do medo, pelo corajoso enfrentamento e martírio. Pentecostes é esse marco: os homens medrosos saem dos esconderijos e anunciam a ressurreição.
E, desde ali, a fé passou a ser não uma viagem individual, uma experiência pessoal exclusiva. A fé cristã é uma experiência comunitária. NÓS CREMOS, dizem os cristãos desde os primórdios. Crer, ter fé, para os cristãos, por conseguinte, é uma experiência pragmática (no sentido linguístico), em que EU ME INSIRO NUMA VERDADE REVELADA E VIVIDA PELOS QUE CREEM. A fé em Cristo é a fé em uma pessoa encarnada, em uma verdade que se põe para mim de fora para dentro e me invade, me toma, me domina.
A fé não é, portanto, a MINHA FÉ, mas a FÉ DOS CRISTÃOS. A fé não se amolda aos meus pensamentos, não sou nem posso ser seu dono ou proprietário. A fé é uma realidade comunitária, na qual me insiro e me descubro como pessoa e como crente. A fé, então, é uma adesão livre e consciente, apaixonada, mas sempre uma adesão.
Os orientais buscam sempre um outro caminho. A verdade seria sempre uma experiência interna, uma busca em si mesmo. Nós seríamos parte de um todo, do deus que habita em mim e para o qual eu retorno após a morte, me dessubjetivando. Ser feliz seria cada vez mais abrir mão de si mesmo, em um processo de autonegação. E esse processo seria uma viagem interna, uma busca por si mesmo em um processo de abandono do self, do ego.
O pensamento, expressão da linguagem que define o nosso mundo e o nosso ser no mundo, seria um mal a ser deixado de lado. Nosso processo de autonegação implicaria a libertação da mente do próprio ato de pensar. Como disse um guru respeitado nos dias de hoje, com seguidores no Brasil, Jiddu Krishnamurti (+ 1986): "Meditação é libertar a mente de toda desonestidade. O pensamento gera desonestidade. O pensamento, no seu esforço para ser honesto, é comparativo e, portanto, desonesto. (…) Meditação é o movimento dessa honestidade no silêncio".
Tomo ainda a fala de J. Krishnamurti como expressão dessa lógica de autonegação através de processos que visam, através da meditação, a busca do abandono de si mesmo, porque pelo abondono do self alcançaria o fluxo vital do qual faria parte e no qual devo me perder, como um Nirvana budista: "Eu aprenderei como estar quieto; aprenderei como meditar com o objetivo de ficar quieto. Eu vejo a importância de se ter uma mente que seja livre do tempo, livre do mecanismo do pensamento, eu a controlarei, a subjugarei, expulsarei o pensamento. Mas isto ainda é operação do pensamento. Isso está muito claro. Então o que ela deve fazer? Porque um ser humano vive nessa desarmonia, ele deve questionar isso. E isso é o que estamos fazendo. Como começamos a questionar isso, ou no questionar, chegamos a essa fonte. É ela uma percepção, um insight, e esse insight não tem nada, coisa alguma a ver com o pensamento? É o insight o resultado do pensamento? A conclusão de um insight é pensamento, mas o insight propriamente não é pensamento. Assim, eu obtive uma chave para isso. Então o que é insight? Posso convidá-lo, cultivá-lo? Isso é afeição, isso é amor. Quando você fala à minha consciência desperta, ela é dura, esperta, sutil, aguda. E você a penetra, penetra-a com seu ver, com sua afeição, com todo o sentimento que tem. Isso opera, nada mais."
E, adiante, ensina ele, completando a sua compreensão: "Não pode dividir a si mesma como "minha inteligência" e "sua inteligência". Ela é inteligência, não é divisível. Agora ela brotou de uma fonte de energia que dividiu a si mesma..." E segue: "Pensamento, matéria, o mecânico, é energia. Inteligência também é energia. O pensamento está confuso, poluído, dividindo a si mesmo, fragmentando a si mesmo. Portanto eu diria que o pensamento deve estar completamente quieto para o despertar da inteligência. Não pode haver um movimento de pensamento e ocorrer o despertar da inteligência."
Como se observa, há uma imensa diferença entre a fé cristã e o pensamento oriental "lato senso": os orientais negam a individualidade, negam o valor do eu e do pensamento, apontam para o TODO ASSUBJETIVADO como sendo a paz e o destino nosso; o cristão valoriza a subjetividade, a dimensão pessoal do homem, e aponta para a fé como como uma realidade intersubjetiva, em que aderimos a verdade do Cristo que se revela na história e nos convida para um diálogo de amor eterno.
O cristianismo valoriza a criação como um todo: a matéria e o espírito têm o mesmo valor como criação do amor de Deus. Ambos, fraturados pelo pecado, são restaurados pelo amor de Deus, que se esvazia, se encarna e assume a nossa história.
A nossa realização não vem da autonegação, mas da nossa afirmação pessoal e comunitária no amor de Deus. Meditar não é abandonar o pensamento, mas voltar o pensamento para Deus, em um ato de entrega e fé. Não preciso, para ser pleno, "esquecer ou abdicar" do mundo lá fora; a plenitude vem em um processo nunca acabado em nossa vida terrena, fraturada pelo pecado, que se realiza através da ressurreição individual. Ou seja, no cristianismo não me dissolvo em um Nirvana; me realizo em plenitude, em minha individualidade, na profunda relação de amor com Deus e com os demais, em um diálogo eterno e constante.
Ouvi com muita atenção as lições de J. Krishnamurti. Veja um dos seus vídeos mais abaixo. E ao ouvi-lo, vi um bom homem reflitindo, em voz pausada, sobre a negação do pensamento, do que somos em nossa constituição antropológica mais profunda. Segundo ele, como não há pensamento completo sobre nada, não se pode pensar na completude, nem o imensurável. Desse modo, Deus e as religiões seriam criações do pensamento, ideologias que levariam às guerras e à mentira.
Mesmo os relacionamentos mais fraternos seriam produtos do pensamento e levariam, também eles, ao conflito. O fundamental seria "romper com a cadeia da continuidade do ego. Só então é possível viver com outro sem uma sombra qualquer de conflito" (1:18:53 do vídeo). Só abrindo mão do eu que poderia estar sem conflito com o outro. Só na autonegação poderia me afirmar perante o outro sem conflito...
Sinceramente, é uma leitura da vida que expurga como mal a religião, a tecnologia, as relações humanas... O que restaria seria, então, abdicar da própria humanidade para, dissolvendo-se no nada, nada restar de si mesmo!
Aliás, J. Krishnamurti firma, noutro vídeo em que dialogo com o Pe. Eugene Scharllet, a seguinte definição de liberdade: "Liberdade é a negação de ser condicionado por qualquer cultura, por qualquer divisão religiosa ou política". Ou seja, liberdade seria estar morto, porque estamos inseridos sempre na cultura; a cultura humana é o eixo em que a vida se dá; a linguagem, aliás, é a maior expressão da cultura. Libertar-se da cultura seria simplesmente deixar de pensar, de respirar. Lamentavelmente o tal Pe. Eugene Scharllet é muito fraquinho e não sabe nada da própria fé e da própria religião. Ora, NEGAR A CULTURA SERIA UM ATO DE ESCOLHA FUNDAMENTADO, OU NÃO, PORÉM - salvo em caso de morte ou coma profundo - A ADOÇÃO DE UMA OUTRA CULTURA, DIVERSA DAQUELA NEGADA.
Para Jiddu Krishnamurti, então, existe uma realidade viva, uma totalidade, que só podemos alcançar se nos transformarmos numa espécie de folha de papel em branco, livres de todo o conhecimento e crença em que vivemos; livres, portanto, da cultura. E só podemos alcançar isso através de uma ação individual. E o que seria essa individual? Chama-se individualidade, para ele, "o estado no qual a ação tem lugar através da compreensão liberta de todos os padrões – sociais, econômicos ou espirituais. É a isto que eu chamo a verdadeira individualidade, porque é ação nascida da plenitude do entendimento, ao passo que o egotismo tem as suas raízes na segurança, na tradição, na crença. Por isso a ação induzida pelo egotismo é sempre incompleta, está sempre ligada à luta incessante com sofrimento e dor" (in: "A Arte de Escutar; Stresa, Itália - 1ª palestra 2 de julho, 1933).
Note-se: o mundo da vida ("Die Lebenswelt"), que é a nossa realidade onde nos inserimos como pessoas, onde a nossa existência se dá, teria que ser dissolvido, simplesmente. Filosoficamente, Krishnamurti desconsidera uma das grandes conquistas da filosofia moderna, sobretudo a partir de E. Husserl, que é o conceito de "mundo da vida. Husserl já dissera que "O mundo nos é dado de antemão, a nós despertos, que somos sempre de algum modo sujeitos com interesse prático…[o mundo] nos é dado como campo universal de toda praxis efetiva e possível, dado de antemão como horizonte". Ora, Krishnamurti trata a nossa realidade como não-realidade, como um obstáculo ao conhecimento, inclusive.
Não por outra razão, o tempo passa a ser um problema para Krishnamurti. Enquanto estivermos presos ao passado, presente ou futuro, teremos obstáculos ao conhecimento. Só podemos alcançar a verdade se a nossa mente se descolar da temporalidade. Diz ele: "Enquanto houver esta marca da memória, tem que existir a divisão do tempo em passado, presente e futuro. Enquanto a mente estiver acorrentada à ideia de que a acção deve ser dividida em passado, presente e futuro, há identificação através do tempo e por isso uma continuidade da qual resulta o medo da morte, o medo da perda do amor. Para compreender a realidade intemporal, a vida intemporal, a acção deve ser completa". E, adiante, é ainda mais claro quanto ao ponto: "Para mim, portanto, a coerência é um sinal de memória, memória esta que resulta da falta de verdadeira compreensão da experiência. E essa memória cria a ideia de tempo; cria a ideia de presente, passado e futuro, sobre os quais se baseiam as nossas ações. Consideramos o que éramos ontem, o que seremos amanhã. Tal ideia sobre o tempo existe enquanto mente e coração estiverem divididos. Enquanto a ação não nascer da plenitude, tem que haver divisão do tempo. O tempo é apenas uma ilusão, é apenas a incompletude da ação" (In: "A Arte de Escutar", Alpino, Itália - 4ª palestra 9 de julho, 1933).
Quanto mais leio J. Krishnamurti, mais me impressiona a vaguidade das suas afirmações, que entram num campo exotérico e caem em um profundo irracionalismo. A liberdade e a verdade, enfim, não seriam possíveis em nossa vida mundana, em que os fatos e o transcurso da nossa história se dão. Temos que fugir para uma realidade atemporal, libertos dos pensamentos, das crenças, do mundo da vida. A liberdade seria a negação do eu, de todas as circunstâncias vitais que me fazem ser quem sou.
Para onde nos levaria essa forma de pensar de J. Krishnamurti? Ele nos dá uma dica: devemos abrir mão de toda e qualquer segurança, inclusive daquelas advindas da prática de virtudes. Tudo isso seria obstáculos à liberdade: "Quando o homem estabelece uma segurança – a segurança da opinião pública ou da felicidade que ele obtém das posses ou da prática da virtude, que é uma fuga – ele enfrenta cada incidente da vida, cada uma das inumeráveis experiências da vida, com o pano de fundo dessa segurança: isto é, ele nunca enfrenta a vida como ela realmente é. Chega a ela com um preconceito, com um pano de fundo já desenvolvido pelo medo; aborda a vida com a mente totalmente revestida, sobrecarregada, de ideias" ("A Arte de Escutar", Oslo, Noruega - palestra no auditório da universidade 5 de setembro, 1933).
E só haveria um meio adequado para se chegar a essa libertação que leva à verdade: abrir mão do eu, negar-se. Nessa mesma palestra ele assevera: "Eu afirmo que existe essa realidade de vida eterna, mas não pode ser compreendida enquanto a mente e o coração estiverem sobrecarregados, estropiados pela ideia do “eu”. Enquanto essa auto-consciência, essa limitação, existir, não pode haver qualquer compreensão do todo, da totalidade da vida. Esse “eu” existe enquanto houverem falsos valores – falsos valores que herdamos ou que perseverantemente criamos na nossa busca de segurança, ou que estabelecemos como a nossa autoridade na busca de conforto".
Insisto nesse ponto: a doutrina de J. Krishnamurti advoga o mais absoluto irracionalismo, a negação do eu, a abdicação dos nossos valores e das conquistas da tradição. A cultura, as nossas descobertas científicas, as nossas crenças, tudo seria um obstáculo à verdade e à liberdade. O que nos restaria, então, diante disso? A resposta que ele nos oferta - perdoem-me a sinceridade - é simplesmente risível e tola: "essa dificuldade existirá enquanto as vossas mentes estiverem sobrecarregadas com esta consciência a que chamamos “eu”. Não posso dar-lhes valores correctos, se eu vo-los dissesse, fariam disso um sistema e imitá-lo-iam, estabelecendo desse modo apenas uma outra série de falsos valores. Mas podem descobrir por si próprios os valores correctos, quando se tornarem verdadeiramente indivíduos, quando cessarem de ser uma máquina. E só se podem libertar desta máquina mortífera dos falsos valores quando estiverem muito revoltados".
J. Krishnamurti prega simplesmente o nada, a fuga da realidade, negando o valor da história e da cultura, porém negando-se a colocar qualquer outra coisa em seu lugar. Ora, para mim isso não é muito pouco; é simplesmente o irracionalismo pintado de misticismo exótico.
Ora, somos embebidos na cultura; a expressão mais imediata do "tesouro comum da humanidade"(Gottlob Frege) é a linguagem. O ato de pensar é individual, mental, mas se realiza na linguagem; o pensamento, produto do ato de pensar, pode ser transmitido a outros e, não raro, pensamos os mesmos pensamentos pensados por outros.
Tudo o que construimos, tudo o que transformamos, é cultura. O fazer humano é sempre dentro de uma tradição, dentro de uma realidade simbólica intersubjetivamente vivida. A cultura produz e reproduz cultura. A reflexão pessoal, posta dentro de um contexto de diálogo, produz consensos e dissensos. A dialética da argumentação, a tese e antítese, as múltiplas formas da compreensão geram mais cultura.
Essa é a nossa riqueza. A busca do consenso é justamente isso: uma busca interminável! Se o agir comunicativo é livre, sincero, voltado ao consenso, podemos avançar na busca de pontos de encontro cada mais firmes, mas o consenso qual tal é uma quimera; o conflito em si mesmo não é um mal: é fonte de crianção intelectual e novas formas de pensamento.
A crença, seja ela religiosa ou filosófica ou de que natureza for, é algo ínsito à cultura humana. Ter pontos de vista, ter uma concepção de mundo, é próprio à condição humana. Por isso, soa desarrazoado quando se receita o fim das crenças para a obtenção da paz:
"A crença inevitavelmente separa.Quem tem uma crença, ou quando buscam segurança nessa crença, separa-se daqueles que buscam segurança em alguma outra forma de crença" (J. Krishnamurti)
Ora, aqui já se expressa uma crença: a de que a crença separa! Krishnamurti universaliza a sua crença, excluindo qualquer outra. E a sua crença é niilista: melhor não ter crença alguma! É dizer, o único meio de encontrar a liberdade e a paz seria deixar de pensar, deixar de se interrogar sobre nós e sobre o mundo, deixar de exercer a nossa capacidade especulativa. É uma lógica que nos diz o seguinte: sejamos amebas e encontraremos a paz!
Impressionou-me muito os vídeos que assisti de J. Krishnamurti. Um homem de fala pausada, que passa uma paz ao falar, demonstrando, em seu gestual, ter aquela visão de algo hermético, profundo, que nós não conseguimos apreender de imediato. Mas quando vamos decompondo racionalmente o seu discurso, quando vamos analisando as consequências lógicas da sua fala, sobra uma sensação de que restou muito pouco para ser aproveitado. E o pouco que restou é vago demais.
A filosofia ocidental avançou demais, mas esse misticismo hermético dos orientais seduz muito aos que estão com sede de sentido. Evocam sentimentos bons, difusos, de modo que aquela fala meio sem sentido parece contecer verdades profundas que fazem bem. É como aquela bebida enteógena conhecida como "ahyausca", chamada Santo Daime: provoca sensações boas... E só, ao final!
Vou terminar as minhas impressões sobre J. Krishnamurti, analisando o que ele compreende por "amor". Disse eu que essa era uma palavra plurívoca, que não podia ser usada como chave para tudo. Um guru dizer que a solução para a felicidade é o amor, ou que a verdade é o amor, ou que a liberdade é o amor, simplesmente põe as coisas no campo do óbvio e - tanto pior - do que não pode ser debatido. Ninguém discordará sobre a importância do amor, salvo se comecemos a nos entender sobre o que cada um entende por "amor". Aí o pau canta, não é mesmo?!
J. Krishnamurti tratou sobre o amor em seu livro "Liberte-se do passado", na décima parte. Como sempre, para abordar o tema ele nega o valor da cultura, das compreensões existentes. Para ele, afinal, a cultura é um mal: "Assim, para examinarmos a questão do amor - o que é o amor - devemos primeiramente libertar-nos das incrustações dos séculos, lançar fora todos os ideais e ideologias sobre o que ele deve ou não deve ser. Dividir qualquer coisa em o que deveria ser e o que é, é a maneira mais ilusória de enfrentar a vida". Em seguida, exclui o valor das concepções existentes: "Em primeiro lugar, rejeitarei tudo o que a Igreja, a sociedade, meus pais e amigos, todas as pessoas e todos os livros disseram a seu respeito, porque desejo descobrir por mim mesmo o que ele é".
Ele passa, em seguida, a dizer o que não seria o amor. Diz ele: "No estado de pertencer a outro, de ser psicologicamente nutrido por outro, de outro depender - em tudo isso existe sempre, necessariamente, a ansiedade, o medo, o ciúme, a culpa, e enquanto existe medo, não existe amor". Ou seja, rejeita ele como amor a entrega do homem a uma mulher, e vice-versa, em um relacionamento sadio e profundo de entrega e ajuda.
À falta de melhor conceito, e para forjar algo novo, vai para o exotérico ao dizer o que é o amor: "Não sabeis o que significa amar realmente alguém - amar sem ódio, sem ciúme, sem raiva, sem procurar interferir no que o outro faz ou pensa, sem condenar, sem comparar - não sabeis o que isso significa? Quando há amor, há comparação? Quando amais alguém de todo o coração, com toda a vossa mente, todo o vosso corpo, todo o vosso ser, existe comparação? Quando vos abandonais completamente a esse amor, não existe 'o outro'". Ora, pergunto eu: se não existe o outro, o ser amado foi absorvido pelo eu? Onde fica a polaridade do amor na relação eu-tu? O eu mata o tu, absorve-o?
Bem, aí nosso guru se sai com afirmações vazias, fátuas, que me impressionam pela falta de conteúdo. Assere ele: "Mas, se desejais continuar a descobrir, vereis que o medo não é amor, a dependência não é amor, o ciúme não é amor, a posse e o domínio não são amor, responsabilidade e dever não são amor, autocompaixão não é amor, a agonia de não ser amado não é amor, que o amor não é o oposto do ódio, como também a humildade não é o oposto da vaidade. Dessarte, se fordes capaz de eliminar tudo isso, não à força, porém lavando-o assim como a chuva fina lava a poeira de muitos dias depositada numa folha, então, talvez, encontrareis aquela flor peregrina que o homem sempre buscou sequiosamente."
Resta-me perguntar, quase em desespero: que coisa é o amor, afinal, para o senhor, meu caro guru? A resposta dele me deixou maravilhado: um engodo retórico de dizer o raso parecendo dizê-lo de modo profundo. Krishnamurti nos diz algo absolutamente vazio de sentido: "O amor é uma coisa nova, fresca, viva. Não tem ontem nem amanhã. Está além da confusão do pensamento. Só a mente inocente sabe o que é o amor, e a mente inocente pode viver no mundo não inocente. Só é possível encontrá-la, essa coisa maravilhosa que o homem sempre buscou sequiosamente por meio de sacrifícios, de adoração, das relações, do sexo, de toda espécie de prazer e de dor, só é possível encontrá-la quando o pensamento, alcançando a compreensão de si próprio, termina naturalmente. O amor não conhece oposto, não conhece conflito".
Fiquei chocado com essa definição de amor. Com todo o respeito, só faltou dizer: amor é porra nenhuma! Eu prefiro uma definição tão profunda quanto a que ele ofertou e que concebi agora: AMOR é o vazio do vazio do vazio, invertido e desdobrado no encralacrado da vida. Amar é pegar o avesso do sentimento e embuti-lo no reluzimento da alma até que a luz se faça presente no infinito do ser. Traduzindo: porra nenhuma!
Feitas essas reflexões, peço cuidado aos que se encantam com esses gurus. Os caras dizem muito de coisa nenhuma, mas de uma forma inteligente, exotérica e exótica, num misticismo sem compromisso com a lógica. É isso. E me perdoem os que gostam dessas construções.
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