domingo, 2 de agosto de 2009

Crônica da semana: Um Olhar

UM OLHAR

As pessoas passavam ao meu lado, cumprimentavam-me. Falava com alguém sobre algo chato e sem relevo, quando senti - sim, senti - olhos que me olhavam absortos, profundamente, vendo sem ver. Era um olhar para além do ambiente, para além de mim mesmo. Era como se me absorvesse, abstraindo-me daquele contexto. Tão profundo que o senti, como se uma energia se desprendesse e me alcançasse ali, apanhando a minha visão periférica. Voltei-me e os meus olhos alcançaram aquele olhar, que continuou assim, como se não visse o meu movimento, como se o tempo estivesse suspenso, com uma cortina de pensamentos encobrindo o instante.

Os olhos se encontraram. Encontraram-se com força. A expressão densa, o rosto meio inclinado, os cabelos longos com fios delicados sobre um dos olhos... Os lábios levemente entreabertos, depois fechados de modo austero. Ela estava ali, olhando-me com os braços delicadamente pousados, um deles dobrado transversalmente sobre o tronco para alcançar o outro e segurá-lo. Fui tragado pelo olhar, que em instantes eternos perdurou para, em seguida, sumir em um movimento de corpo, dando-me as espaldas e andando adiante. Os cabelos longos dançaram com aquele movimento abrupto e candidamente suave, banhando as costas como línguas d'água.

Aquele olhar profundo, invasivo, penetrante, nunca me abandonou. Eram olhos lânguidos, com uma ponta de tristeza. Tomava-me, porém sem tomar para si. A melancolia estava ali, mergulhando naquela profundidade de pensamentos e sentimentos não revelados, escondidos em camandas profundas e íntimas.

E fiquei ali, perturbado por aquele olhar. Os olhos espessos, a fisionomia marcada, o rosto lindo e sofrido, a boca vermelha entreaberta... Um quadro pintado pela vida, pelo instante. Um quadro... Um olhar...

***

Um comentário:

  1. Meu querido,

    Que bela crônica!

    Acho que a mais bela por você escrita - pelo menos que li.

    Se a pusermos, sem exagero, no rol das grandes crônicas brasileiras, ela ocupará o grupo das melhores.

    E, se necessário fosse, poderíamos provar isso, literária e linguisticamente.

    Por ora é isso. Forte abraço! (Seu bordão preferido, rsrsrsrs.)

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