Criou-se uma polêmica sobre o acordo diplomático firmado entre a República Federativa do Brasil e a Santa Sé (Estado do Vaticano), denominado Concordata, pelo qual se definiu o estatuto jurídico da Igreja Católica Apostólica Romana no Brasil. Trata-se de um documento assinado por Sua Santidade, o Papa Bento XVI, e o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, com a finalidade de formalizar as relações entre Estado e Igreja, definindo perante a legislação brasileira a natureza jurídica das atividades desenvolvidas pela Igreja Católica, a disciplina jurídica das relações entre ela e os seus ministros ordenados e fiéis consagrados, o regime tributário a que ela e as pessoas jurídicas por ela criadas com a finalidade filantrópica se submetem, além do ensino religioso nas escolas públicas. Em resumo, a concordata trata dos seguintes temas: organização e personalidade jurídica das instituições eclesiásticas; imunidades, isenções e benefícios fiscais; patrimônio cultural; casamento; regime trabalhista de religiosos.
Em que pese a simplicidade do documento, criou-se uma descabida polêmica, sendo suscitada por alguns a inconstitucionalidade do acordo, em razão de ser o Brasil um estado laico e da separação histórica entre Igreja e Estado. E a razão principal da crítica seria justamente a previsão do ensino religioso em escolas públicas, o que quebraria, sempre segundo essa visão reducionista, a vértebra de um Estado laico. Afora isso, houve algumas denominações religiosas que se queixaram do tratamento jurídico diferenciado dado à Igreja Católica, nada obstante a crítica fosse difusa, talvez por desconhecimento do conteúdo do texto assinado pelo Brasil e pela Santa Sé.
Na verdade, a concordata não traz grandes novidades nem cria privilégios para a Igreja Católica. Trata-se de um acordo que formaliza práticas já consolidadas, sendo agora juridicamente reconhecidas pelo Estado Brasileiro de modo formal e orgânico. Por exemplo, a organização e a personalidade jurídica das instituições eclesiásticas é historicamente vivenciada em nosso ordenamento jurídico, sendo de conhecimento corrente que a Igreja possui em sua estrutura organismos como a Conferência Episcopal, Províncias Eclesiásticas, Arquidioceses, Dioceses, Prelazias Territoriais ou Pessoais, Vicariatos e Prefeituras Apostólicas, Administrações Apostólicas, Administrações Apostólicas Pessoais, Missões Sui Iuris, Ordinariado Militar e Ordinariados para os Fiéis de Outros Ritos, Paróquias, Institutos de Vida Consagrada e Sociedades de Vida Apostólica (artigo 3º do Acordo).
No que diz respeito ao ensino religioso, aí sim, surge o eixo mais sensível da crítica daqueles que sonham com um Estado sem a presença de Deus e, sobretudo, sem os sinais da Igreja. Todavia, ao contrário do que muitos poderiam pensar, o Acordo firmado não buscou criar qualquer benefício para a Igreja Católica, porém, respeitando o pluralismo, desejou preservar a manutenção do ensino religioso, independentemente da sua vinculação aos ditames da Igreja, para que as crianças e jovens tenham direito a uma formação integral, inclusive com ênfase em sua espiritualidade. Por isso, em seu artigo 11 foi estipulada a seguinte cláusula: “A República Federativa do Brasil, em observância ao direito de liberdade religiosa, da diversidade cultural e da pluralidade confessional do País, respeita a importância do ensino religioso em vista da formação integral da pessoa”. E em seu parágrafo único: “O ensino religioso, católico e de outras confissões religiosas, de matrícula facultativa, constitui disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental, assegurado o respeito à diversidade cultural religiosa do Brasil, em conformidade com a Constituição e as outras leis vigentes, sem qualquer forma de discriminação”. Ou seja, cumpre o Acordo o programa constitucional que prevê a obrigatoriedade do ensino religioso em escolas públicas, nada obstante sem previamente definir ou negar o seu caráter confessional.
Aliás, esse é o ponto fundamental da irritação daqueles que pregam um Estado sem Deus: o acordo celebrado reconhece claramente, extensiva a todas as denominações religiosas, a possibilidade de ensino confessional, em sintonia com o art.210, § 1º, da Constituição Federal e com uma reta interpretação do art.33 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB). Como muito bem enfatizou Dom Filippo Santoro, bispo auxiliar do Rio de Janeiro, “É inegável que o ensino religioso não deve ser entendido como alusivo a uma 'religião genérica', a-confessional, indefinida, já que uma tal ‘religião’ não existe. Seria pura abstração mental, sem correspondência na realidade da vida e da sociedade humana. E se o Estado quisesse administrar esta forma de ensino genérica, esta sim seria contra a laicidade do próprio Estado porque ele não possui uma religião própria, mas deve respeitar as formas religiosas que se encontram na sociedade”.
Deste modo, resta claro que o Acordo celebrado entre a Igreja e o Brasil não cria privilégios, mas apenas reconhece juridicamente práticas históricas consolidadas da principal religião do país. Ademais, reafirma o programa constitucional da obrigatoriedade de ensino religioso, levando para as crianças e jovens da rede pública o sentido do sagrado e a mensagem salvífica. Assim, o Acordo apenas afeta os que desejam não um Estado laico, mas sim um Estado anti-religioso, intolerante e sem Deus. Por isso, a pergunta inicialmente formulada: por que tanto medo do ensino religioso?
(Texto publicado originariamente no blog "Visão Cristã")