domingo, 8 de novembro de 2009

O menino, os sonhos e a fé

Lá estavam o meu pai e a minha mãe, Paula e eu. Conversávamos gostosamente sobre os caminhos da vida. A infância difícil dos meus pais, cada qual do seu modo. Meu pai criado sem mãe, pulando de casa em casa de parentes, enquanto o vovô João, seu pai, seguia em suas andanças tantas. Um homem bom ele, porém avesso a responsabilidades, com uma constante inquietude que o fizera ir para lá e para cá, muitas vezes sem rumo certo, em busca de sonhos e realidades fátuas. O papai, que nasceu em casa de taipa, em um lugar ermo chamado Pau Amarelo (hoje situado em Taquarana), andou de déu em déu, às vezes dentro de uma cangalha no lombo de um burro, para ficar mais uma vez em casa de parentes desconhecidos.

Foi salvo pelo encanto de criança, que se impressionou com a prédica de uma padre, com a sua cultura, e quis ser como ele, falar como ele, ser também culto. Os sonhos nos movem, rompem as fronteiras entre a crua realidade e a esperança, podendo nos fazer transcender os limites impostos pelo nosso mundo circundante. E aquele menino criado por familiares, incomodado com a ausência de ninho e de segurança, correu atrás das letras, das palavras diferentes que o padre rescitava em latim. Vejo aquele menino, não sem me emocionar.

O menino esgueirou-se por entre os crentes e ficou com o rosto na porta semi-aberta, olhando para o padre, que rezava a missa em latim. Os pobres viam uma vez por mês o homem trajado com aquelas vestes diferentes, falando uma língua estranha. O menino observava aquilo tudo com os olhos imensos de vivo interesse, porque naquela aldeia era incomum homens letrados, cuja fala revelava sabedoria e preparo. Sim, com os seus sete anos, aquele imagem o marcou para o resto da sua vida: queria ser igual àquele padre alemão, com o seu português carregado de sotaque, sempre seguido pelas beatas quando desfiava o seu latim.

O povoado de Barro Vermelho ficava no município de Juqueiro, em Alagoas. Pequeno, acolhia os sonhos daquele menino que havia perdido a mãe aos cinco anos de idade. O seu pai, sempre afeito a viagens e ao descompromisso, vivia pulando daqui para acolá, por vezes deixando o menino na casa de parentes. E foi assim que um dia o levou na casa de uma parenta, em Penedo, deixando-o por lá para estudar. E mais uma vez viu-se ele encantado com os padres, o seu preparo diferenciado naqueles anos 40 do seculo XX. Assim, foi ao mosteiro que fica ainda hoje na parte histórica de Penedo, conhecendo o padre Libório, a quem disse sem ter nem porque que queria ser padre. “Mas menino, você tem certeza?”. Sim claro que tinha. E lá foi o seu pai ao convento para dizer que não tinha as condições financeiras para comprar o enxoval que o levaria a ingressar no seminário.

Entre a boa vontade do frade e a falta de recursos do pai, deu-se que o menino foi à sede da Diocese e procurou o bispo, a quem falou da sua vocação e da falta de recursos. O bispo, comovido com a coragem e disposição daquele menino de 12 anos, deu-lhe recursos (alguns réis), que foram levados ao frade. Que surpresa! E assim foram comprados tecidos para o enxoval, feito inteiramente pela parenta do menino. E lá foi ele para Campina Grande, com os sonhos na mala, ingressando no seminário para ser um dia como aqueles homens letrados, tão diferentes dos lavradores da sua família e dos seus vizinhos.

O menino estudou no seminário. Aprendeu latim, foi apresentado à língua grega, ganhou intimidade com o português, aprendendo profundamente gramática. Ali, entre os estudos e os rigores dos frades alemães, pode estudar e ganhar contato com as letras, com a cultura, tudo tão estranho à sua gente e à pobreza de onde vinha. Se desde cedo vivera fora de casa, sem o aconchego da mãe que perdera, sem o sentido de família que o pai não lhe dera, ali, no seminário, encontrava-se com Deus, com a fé católica que marcara toda a sua vida, sonhando ser um dia padre.

E assim foi, até que a má alimentação da infância cobrou o seu elevado preço: estafa, cansaço, dificuldade física, tudo começou a lhe pesar, fazendo-o padecer de forma tão intensa que, já sem forças para continuar silenciando os seus tormentos, teve que se abrir com o seus superiores. E foi levado ao médico, sendo dado um triste diagnóstico: não mais podia ficar no seminário; quela vida contribuia para o seu infortúnio. Aos 21 anos viu-se sem rumo, voltando para a casa do seu pai, agora novamente casado com outra mulher e sem espaço para que ele pudesse sentir-se acolhido.

O menino, que fora realizar os seus sonhos, de repente foi abandonado por eles, jogado à própria sorte em razão da sua precária saúde. E lá foi ele novamente andar sem casa, sem o seu lugar, indo ensinar a crianças em uma fazenda próxima, mediante pagamento, chamada “Brejo”. Foi no Brejo que pode se recuperar, porque entre as aulas dadas às crianças da região e aos filhos do dono do local, pode ter contato constante com o verde, o leite de vaca na manhã cedinho, as andanças silenciosas e despreocupadas, podendo ganhar peso e paz, sem os horários e as atribuições que tinha no seminário.

Até que pode juntar uma pequena soma de dinheiro e foi morar em Junqueiro, à convite do Padre Santana, passando a dividir com ele a casa paroquial, justamente para ensinar um número maior de crianças na cidade. Como se fora frade, certo que um dia voltaria ao seminário, continuava andando na cidade com uma túnica amarrada com largo cordão na sua cintura.

Estimulado pelo Padre Santana, passou a estudar para concursos e, com o ritmo intenso, voltaram os sintomas que o fizeram sair do seminário. Ali, para a sua dor, teve a certeza que não mais voltaria para aquela que seria a sua vida e a sua vocação. Ali, naquele momento, poderia ficar revoltado com Deus e com a sua fé. Mas soube ser humilde diante dos desígnios que não lhe eram compreensíveis, buscando seguir em frente, à procura de novos caminhos.

Mas encontrou Tereza e com ela o amor, a família que não tivera até então, o ninho que lhe faltara. Com ela encontrou o aconhego, os cuidados constantes, a realização de homem e de pessoa. Mas sempre rezando, sempre fazendo da sua vida uma oração constante e um profundo esforço para honrar a Deus. Não se pode pensar no papai sem pensar na sua fé, sem pensar na Igreja.

Conversamos muito ontem. E essas histórias me vieram à mente. Como aprendi tanto com elas, quis participar aos meus leitores aquele exemplo que tivemos, os seus filhos.


Um comentário:

  1. Hoje você pode dizer que tem sorte. Não sei se estou certo, mas acho que existir é ter sorte, ainda que sobre o infortúnio de alguém. Aliás, se seu pai tivesse logrado êxito na busca de seu objetivo, eu não estaria postando esse comentário.

    Tenho certeza de que ele preencheu aquele vazio deixado pela impossibilidade de seguir sua vocação, pois não existe nada mais gratificante para um pai do que sentir orgulho do filho.

    É, ele passou o bastão, e a equipe ganhou; vocês ganharam!

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