quarta-feira, 24 de junho de 2009

O Ministério Público e a lei da mordaça

Vivemos sob o denuncismo desbragado, em que a honra e o direito de defesa são simplesmente esmagados por uma sanha acusatória sem limites. Aqui em Alagoas, só para se dar um exemplo corriqueiro no resto do país, o Ministério Público ingressa com uma ação contra determinada pessoa, faz uma matéria jornalística com a sua assessoria de imprensa e a encaminha para todos os veículos de comunicação social, que a divulgam e emprestam às acusações uma natureza de coisa julgada material. O acusado está socialmente condenado.
Ainda essa semana, só para exemplificar, foi publicada nos portais de internet noticiosos, nos jornais de papel e em blogs, uma matéria produzida pela assessoria do Ministério Público Federal, informando que a ex-prefeita de Maceió, Kátia Born, estava sendo processado por improbidade administrativa pelo uso ilícito de recursos do SUS em publicidade de promoção pessoal (veja a matéria MPF acusa Born). Ora, a matéria - com a dimensão dada na acusação - esconde a principal informação, apenas posta em uma breve oração:
"Ao julgar o caso, a 1.ª Vara da Justiça Federal em Alagoas entendeu que não seria de competência da Justiça Federal apreciar e julgar questão referente ao mau uso de verba estadual, onde não existe interesse federal. Além disso, afirmou que os informes pagos com recursos federais não tinham o objetivo de realizar a promoção pessoal da então secretária, já que destacavam notícia de interesse geral. O MPF, então, recorreu ao TRF-5." (grifamos)
Se a ex-prefeita havia sido absolvida pela primeira instância, porque o estardalhaço na divulgação de um recurso aviado contra a sentença? Respondo: para enfatizar a acusação, a condenação social sobre a ré, desequilibrando a relação entre as partes no processo e ferindo a honra do cidadão, como se lhe falecesse a presunção de inocência, nesse caso de Kátia Born com o agravante de ter ela em seu favor uma sentença favorável.
O Ministério Público quando acusa, exercendo a persecução penal ou não, é parte, ingressa numa relação processual com o ônus de provar o que alega. Todavia, em uma relação promíscua com a mídia, a acusação, pelo simples fato de ser feita, ganha já foros de verdade absoluta, deixando o acusado sempre em uma posição de fragilidade diante do Leviatã estatal. As garantias individuais cessam ou são solapadas à laia de se defender o interesse público, como se ele fosse superior ao interesse privado simplesmente. Não é. Já faz algum tempo que o chamado princípio da supremacia do interesse público sobre o particular vem sendo questionado e posto em seu devido lugar: como algo relativo, a merecer ponderações, uma vez que levado à aplicação cogente transformaria o Estado em autoritário e os cidadãos em súditos, submissos ao império sem peias (sobre esse tema, há uma boa obra coletiva que deveria ser lida: Interesses públicos versus interesses privados: desconstruindo o princípio da supremacia do interesse público, 2ª ed., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007).
Ora, quando o órgão estatal responsável pela fiscalização da observância do ordenamento jurídico e pela acusação contra aqueles que, em tese, agiram contra ele, passa a usar a mídia como arma para atacar supostos inculpados, estamos diante de um perigoso expediente, em que a parte forte da relação, o órgão estatal, se põe em posição de aniquilar a parte fraca, o cidadão, que exercerá o seu direito de defesa na intimidade do processo judicial, quando a acusação é feita desabridamente através da mídia. O Estado se coloca, assim, em uma posição não apenas superior perante o cidadão, mas nega-lhe o direito fundamental a ampla defesa, que pressupõe a paridade das armas, além de lhe sonegar a presunção de inocência garantida constitucionalmente. É dizer, os direitos fundamentais passam a ser pilhados pelo Ministério Público a pretexto de defender a sociedade.
Há de existir uma legislação que limite os excessos da atuação de membros do Ministério Público, como o uso recorrente da mídia como instrumento de atuação e persuasão. A acusação informal, através dos meios de comunicação social, é uma clara afronta aos direitos fundamentais do acusado, antecipadamente já exposto ao reproche social. E não se trata de noticiar, apenas, como se viu na matéria sobre a ex-prefeita Kátia Born: trata-se de transformar a peça de acusação em matéria jornalística com ares de objetividade e verdade, sem se dar o direito, no mesmo espaço, a que fossem expostas as linhas mestras da defesa. Então, por mais que haja uma sentença, como no caso, que inocente o acusado, pouco importa: no dia seguinte sai uma nova matéria repercutindo as mesmas acusações e fazendo pouco caso da decisão judicial. Ora, isso está certo?
Por essa razão, entendo que há de existir uma legislação rígida para impedir esses abusos. Os seus críticos chamam de "lei da mordaça", mas na verdade seria a lei do "silêncio obsequioso" ou "lei da responsabilidade do fiscal", para parodiar a lei de responsabilidade fiscal. Essa coisa de ficar usando a mídia para detonar desafetos ou acusados em geral já se mostrou uma aberração, em casos como daquele famoso procurador da República, Luiz Francisco, que usou o cargo para aniquilar a honra do então secretário-geral da Presidência, Eduardo Jorge, na era FHC, para sumir no governo do PT, sem dar o ar da graça nem mesmo no fatídico caso do mensalão. (Diga-se de passagem que o procurador Luiz Francisco foi punido pelo CNMP com uma suspensão de 45 dias (aqui). Diante da sua campanha difamatória, foi muito pouco).
Até lá, porém, teremos que assistir impotentes essa verdadeira patrulha midiática de membros do Ministério Público, que passam a virar celebridades em cima da vida e da honra alheias.

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