quarta-feira, 24 de junho de 2009

Dom de Deus

Lá entrou o homem de mediana estatura, com os cabelos brancos, vestido de púrpura e um sorriso aberto, bonito, olhos brilhando. As pessoas começaram a aplaudi-lo, formando-se um clima de emoção. O ambiente vasto ficou eletrizado: palmas, acenos recíprocos, sorrisos e lágrimas... O monsenhor Henrique ingressou no episcopado com o calor do afeto das suas ovelhas. Aliás, o momento da sua fala, que o fez ir às lágrimas, foi justamente esse: quando falou da sua comunidade da Igreja do Livramento, daqueles que rezavam com ele, que buscavam o perdão dos pecados e os conselhos do homem de Deus.
Dom Henrique! Olho para o meu irmão vendo as suas limitações, que o fazem enorme. Humano demais, sabe-se frágil, pequeno, dependente da misericórdia de Deus. Que se olha assim, quem enxerga a trave no seu olho, pode fitar os outros como irmãos, como dignos de perdão e do amor cristão. A sua fé é autêntica e se faz vida por isso: ele sempre soube reconhecer que o pecado é um fato histórico, adâmico, constitutivo do mundo caído. O pecado invadiu a criação, fraturou a nossa relação com Deus e penetrou na natureza, razão pela qual a salvação é cósmica: o Filho era necessário, fundamental, na sua encarnação. Como na antiga oração, pela encarnação Ele assumiu a nossa humanidade frágil, os nossos pecados, dando-nos a graça da sua divindade, do resgate pago a elevado preço.
Dom Henrique viveu na carne a sua fé. Não fez um caminho retilíneo para o episcopado, porque não fez carreira. Foi escolhido pelos seus, sem que fizesse política, sem que abdicasse da sua fé, sem que transigisse com qualquer posição contrária à fé e à Igreja. E foi ferido, incompreendido por alguns, mas inspirou a muitos: quando poucos usavam clégima, patrulhados pelos esquerdopatas católicos, passou ele a fazer uso diário, assumindo-se com o orgulho padre; quando a batina saiu de moda, ele passou a vergá-la todos os dias, como símbolo da fé e da sacralidade do sacramento da ordem; quando muitos queriam fazer da liturgia uma festança nas missas, com a adoção de ritos afros ou de procedimentos inspirados pela teologia da libertação, ele passou a viver a missa como um rito sacro, com uma liturgia cuidadosa, animada por incensos, cantos antigos e espírito de oração. Foi um revolucionário! Uma contradição enorme: a sua revolução esteve em conservar a tradição, em olhar para os Santos Padres, em usar os tesouros da fé católica sem medo, porque sabedor do que foi confiado à Igreja pelo Espírito Santo.
Vi aquele homezinho gigante entrando no ginásio e chorei. Chorei como irmão, chorei como cristão, chorei com orgulho e alegria. E lembrei-me da sua volta a Maceió, quando deixou a vida monástica. Poderia ter vindo revoltado, sentindo-se abandonado por Deus. Poderia ter visto a sua vida como um engano, como uma mentira... Poderia ter desistido de amá-Lo, fazer como muitos fazem: renegá-Lo e culpá-Lo pelos seus fracassos. Mas não. Veio com vontade de viver e vencer, de não ser um peso para os seus pais. E o monge foi trabalhar no comércio, vender relógios e jóias na L'orgil, ensinar história e religião em colégios religiosos, buscando ir em frente.
E um dia, quando todos saíram de casa, ele ficou sozinho rezando na sala, com ícones sobre o centro de vidro, a bíblia aberta, os seus livros de oração sendo mais uma vez rezados... E quando voltamos todos, estava ele novamente sendo chamado: - "Vou ser padre!". E começou o caminho novamente, com humildade e fé madura. Estudou em Roma, em seguida, e voltou para os seus, ordenado padre, com a missão de substituir o Cônego Hélio Lessa, culto reitor da Igreja do Livramento.
É esse homem que foi sagrado Bispo. Poderia ter ficado mutilado quando deixou a vida monástica, mas viveu a fé com os medos e a perplexidade de quem se lança no amor de Cristo, porém com a entrega a Ele nas longas noites escuras, repletas de esmagadora solidão. E Dom Henrique, dom de Deus para os seus, nos ensina com o seu olhar, com o seu sorriso, que a fé nos amadurece para sermos crianças brincando nos jardins do Pai.
Para ele, quando vierem as noites traiçoeiras em seu episcopado, lembro São João da Cruz, um dos seus santos prediletos:

Em uma noite escura
De amor em vivas ânsias inflamada
Oh! Ditosa ventura!
Saí sem ser notada,
´stando já minha casa sossegada.

Na escuridão, segura,
Pela secreta escada, disfarçada,
Oh! Ditosa ventura!
Na escuridão, velada,
´stando já minha casa sossegada.

Em noite tão ditosa,
E num segredo em que ninguém me via,
Nem eu olhava coisa alguma,
Sem outra luz nem guia
Além da que no coração me ardia.

Essa luz me guiava,
Com mais clareza que a do meio-dia
Aonde me esperava
Quem eu bem conhecia,
Em lugar onde ninguém aparecia.

Oh! noite, que me guiaste,
Oh! noite, amável mais do que a alvorada
Oh! noite, que juntaste
Amado com amada,
Amada no amado transformada!

Em meu peito florido
Que, inteiro, para ele só guardava,
Quedou-se adormecido,
E eu, terna o regalava,
E dos cedros o leque o refrescava.

Da ameia a brisa amena,
Quando eu os seus cabelos afagava,
Com sua mão serena
Em meu colo soprava,
E meus sentidos todos transportava.

Esquecida, quedei-me,
O rosto reclinado sobre o Amado;
Tudo cessou. Deixei-me,
Largando meu cuidado
Por entre as açucenas olvidado.

Nenhum comentário:

Postar um comentário