quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

Râmana Mahârshi: O Ser e o Pensamento

Por que será que a cultura oriental (leia-se, os mestres do yoga e quejandos) têm tanto medo do conhecimento e do pensamento? Sempre me incomoda quando leio essa forma de espiritualidade oriental a tese de que (a) devemos abdicar do eu (ego, self) em favor de um fluxo existencial (que pode ser o Nirvana ou o Ser), e (b) de que o pensamento ou conhecimento devem ser descartados. Ou seja, a realização estaria numa espécie de autonegação.

Um mestre chegou a afirmar que "O mero aprendizado de livros não é de grande utilidade. Depois da Realização todas as cargas intelectuais viram fardos a serem jogados fora." Essa lógica rejeita algo fundamental: a cultura. Ou seja, tudo o que nós, quando nos interrelacionamos no decorrer da história, criamos como marcas da nossa humanidade simplesmente deveria ser "jogado fora".

Não é à toa que esse mesmo grande mestre indiano afirma que a cultura é um mal: "Os pouco instruídos se libertam mais facilmente do que aqueles cujo ego não se abrandou apesar de toda a sua cultura. Os chamados homens sem cultura estão livres do domínio implacável do demônio da auto-fascinação; eles estão livres da doença da turbulência de pensamentos e palavras; eles estão livres de correr atrás de riqueza. É de mais de um mal que estão livres". É dizer, para a nossa realização deveríamos buscar o SER, que nada mais seria do que a nossa autonegação, a rejeição da cultura na qual estamos inseridos e, mais ainda, fugir dos pensamentos e palavras, que apenas nos destraem.

Evidentemente que poderíamos abrir um debate sobre o valor heurístico de cada proposição desse mestre indiano, que cito como exemplo. Mas logo ele, e com ele os seus discípulos, rejeitariam o debate, ao argumento de que o pensamento e a cultura são um mal. Aliás, tal afirmação é feita por esse mestre que cito, sem rebuços: "Esses tipos de disputa são infindáveis. Não participe delas. Ao invés disso, volte a sua mente para o interior e ponha um fim a tudo isso. Todas as disputas são fúteis". Bem, se toda a discussão cessa desde o início, abdica-se de qualquer racionalidade e, em verdade, resta apenas o irracionalismo puro e simples que se arroga uma clarividência que independe do pensamento, das palavras, da razão ou de qualquer lógica. A isso, muitos adotam como uma suprema sabedoria!
Para esse mestre indiano, cuja obra estou lendo, busca explicar o que seria para ele o SER. Diz ele: "O Brahman ou Eu Real é como uma tela de cinema, e o mundo é como as imagens que aparecem nela. Você só vê a imagem enquanto há uma tela. Mas quando o próprio observador se torna a tela apenas o Eu Real permanece". As palavras, que bem poderiam ser enigmáticas, querem dizer o seguinte: o observador deve se perder na realidade que sustenta aquilo que vemos. O mundo, na verdade, não é o real. Nós não somos real (inegável o platonismo aqui), mas o SER - a tela de cinema - só pode ser alcançado quando o observador deixa de existir e passa a fazer parte da tela. Ou seja, o eu tem que se dissolver para tornar-se o EU REAL, que nada mais é do que uma realidade sem o ego, o eu, sem o que me faz pessoa.

Diz o mestre indiano: " Apenas o Eu existe e é real. O mundo, o indivíduo e Deus são criações imaginárias dentro do Eu". Essa negação do indivíduo, do self, termina nos levando para uma negação da história, da cultura e de tudo o que nos cerca. A matéria seria um mal; meu corpo, a minha casa, a "realidade" que me cerca me prenderia e deveria ser destruída para a minha libertação, inclusive de mim mesmo. Como diz esse mestre indiano, "O indivíduo que identifica a sua própria existência com a existência da vida no corpo físico, e o toma como “eu”, é chamado de ego. O Eu Real, que é pura Consciência, não tem sentimento de ego ligado ao corpo. Nem pode o corpo físico, que é por si só inerte, ter esse sentimento de ego. Entre os dois – ou seja, entre o Eu ou pura Consciência e o corpo físico inerte – surge misteriosamente a sensação de ego, ou noção de ‘eu’, este híbrido que não é nenhum dos dois e que floresce como ser individual. Este ego ou ser individual é a raiz de tudo o que é fútil e desagradável na vida. Por isso ele deve ser destruído por qualquer meio possível; então permanece apenas o brilho d’Aquilo que sempre é. Isso é a Libertação, Iluminação ou Auto-Realização".

Ora, para a nossa realização deveríamos nos negar? A realidade verdadeira estaria além de nós, embotada por nossa mente, por nossos pensamentos, pela reflexão que fazemos sobre o que nos cerca e que chamamos de "realidade"? Ou seja, para descobrirmos o SER deveríamos negar quem somos, abdicar da nossa cultura, deixar de pensar e refletir?

A única resposta para essa forma de espiritualidade é justamente "sim". Afinal, para o mestre indiano, fazendo inclusive uma leitura equivocada da Bíblia, "A essência da mente é apenas atenção ou consciência. Entretanto, quando o ego nubla a mente, esta adota as funções de raciocínio, pensamento e percepção. A mente universal, não sendo limitada pelo ego, não tem nada exterior a si, e portanto ela é apenas consciência. É isso o que a Bíblia quer dizer com “EU SOU O QUE EU SOU”. Ou seja, o pensamento, a percepção, as funções intelectivas da mente, seriam um mal do ego, do EU aprisionado em um corpo, nublado do Eu Real. Não existiria, a rigor, o self, o indivíduo, que seria o embotamento do Eu Real, o Nirvana budista, onde nos perderíamos (ou nos acharíamos) em um fluxo existencial, no verdadeiro SER.

Para chegarmos ao verdadeiro SER devemos abandonar o ser-que-somos, o ser-aí (Dasein), o ser na história, na temporalidade. Voltamos a um ser metafísico e desencarnado, que rejeita a matéria, a vida vivida, o pensamento pensado. Como diz o mestre indiano: "Isso acontece porque essa percepção de “eu” está associada a uma forma, talvez a forma do corpo físico. Mas nada deveria ser associado ao Eu puro. O Eu Real é a Realidade pura em cuja luz brilha o corpo, o ego, e tudo mais. Quando todos os pensamentos são aquietados sobra apenas a pura Consciência".
Estou conversando sobre o livro "Os Ensinamentos de Ramana Maharshi em Suas Próprias Palavras". O livro pode ser lido integralmente nesse link (aqui).

Râmana Mahârshi é considerado um homem santo do sul da Índia, falecido em 1950. Ele não deixou livro escrito, sendo o seu pesamento compilado por discípulos. A sua vida, o seu exemplo, gerou inúmeros seguidores, sendo ainda hoje seguido e respeitado.

Os comentários que tenho feito sobre Krishnamurti e, agora, sobre Râmana Mahârshi, são respeitosas análises do pensamento dessa espiritualidade oriental que ainda hoje fascina a muitos, sobretudo como fonte de profunda sabedoria. É preciso, porém, além da fé que desperta - o que é positivo! - passar pelo crivo da razão essa forma de sabedoria, como se fez com o cristianismo nesses 2 mil anos de história.

E há muito para refletirmos com abertura e busca sincera da verdade em nossas vidas. Que nada aqui seja visto como desrespeito, mas como uma abertura sincera a um importante diálogo
 

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