quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

DEUS, O SER, O NADA

Abandonar quem somos, fundir-se à substância de onde viemos e para onde voltaremos, sair de si e abandonar-se cada vez mais, até que os nossos sentidos se esvaziem, até que possamos passo a passo ir negando a nossa realidade física, a dor, o prazer, caminhando para fazer parte da verdadeira realidade. Negar-se, esvaziar-se, dessubjetivar-se. A isso, no budismo, chama-se NIRVANA. Com esse estado de liberação, quebra-se a roda do karma, interrompendo o processo de contínuos renascimentos. É dizer, para essa visão de mundo, o caminho da libertação é o caminho da autonegação. O problema do SER reduz-se a um falso problema, a um estado em que o self, o eu, simplesmente deixou-se absorver em uma correnteza vital.

No NIRVANA, portanto, estaríamos libertos da tirania do ego, da ignorância, da ilusão e da dor. Mas esse libertar-se, insista-se, é o negar-se como pessoa, como identidade. Cada indivíduo tem um espírito que retorna à Fonte de Vida ou Fonte do Espírito para tornar-se uno. Não existiriam almas individuais; haveria uma unidade vital em que o ganhar é simplesmente perder-se de si mesmo.

É um traço comum das religiões orientais o PANTEÍSMO, que é a crença de que Deus é tudo e todo mundo e que todo mundo e tudo é Deus. É dizer, haveria um único ser; seríamos todos deuses, cada qual fazendo parte de um único ser. Como tudo é tudo, o próprio panteísmo dissolve o problema do ser pela base; o ser é o todo. Lembro-me, assim, de uma frase precisa: "onde tudo é tudo, nada é nada!".

No PANTEÍSMO, criador e criatura são uma só e mesma coisa. Não há lugar para Deus no panteísmo; Deus é tudo. Sendo tudo, nada é! Como diz o ateu Arthur Schopenhauer ("Algumas palavras sobre o panteísmo"): "Contra o panteísmo, sustento principalmente que ele não diz nada. Chamar Deus ao Mundo não significa explicá-lo, mas apenas enriquecer a língua com um sinônimo supérfluo da palavra Mundo. Se dizeis “o Mundo é Deus” ou “o Mundo é o Mundo”, dá no mesmo. Quando partimos de Deus como se ele fosse o dado e o a-ser-explicado, e dizemos portanto: “Deus é o Mundo”; então numa certa medida existe uma explicação, ao se reconduzir "ignotum a notius": mas trata-se somente de uma explicação de vocabulário. Porém, quando se parte do efetivamente dado, portanto o mundo, e se afirma “o Mundo é Deus”, então se torna claro que com isto não se diz nada, ou ao menos que se explica "ignotum per ignotius" [O desconhecido pelo mais desconhecido]."

O curioso é que muitos, falando em nome do SER, negam justamente o individual, o subjetivo, o self, o que há de fundamental na criação: a criatura! Somos criaturas, somos justamente um projeto pendente de realização, criados com a liberdade de dizer "sim"ou "não". E se esse é o nosso desafio, é também o maior drama. Deus nos concedeu o livre arbítrio até mesmo para negá-lo, para maldizê-lo, para dele fugir.

E tem uns bobalhões que são críticos da fé alheia, que verbaram a FÉ IMPUDICA NA AUSÊNCIA DA FÉ, sendo mais dogmáticos que o mais míope fundamentalista religioso. Negar Deus é apenas a fé no NADA, no sem-sentido, no desespero. É, também isso, creiam-me!, uma forma de fé. E se for sincera, autêntica, é a fé mais dolorosa que pode alguém sentir.

Ah, Nietzsche, com seu niilismo profundo, não tardou em chamar o budismo de "nostalgia do nada", em um texto seu sobre niilismo e cristianismo: "O budismo hindu não tem atrás de si uma evolução completamente moral, esta é a razão por que não há nele, no seu niilismo, senão uma moral não-superada: existência como punição e existência como erro combinadas e, por conseguinte, o erro como punição — apreciação de valor moral."

E daí, justamente dessa dolorosa desilução de Nietszche, que encontra amparo no budismo contra o cristianismo, ele saca a mais desesperadora certeza: nada tem sentido! Diz ele:

"Pensemos este pensamento na sua mais terrível forma: a existência, tal como ela é, privada de sentido e de finalidade, mas se repetindo inelutavelmente, sem acabar no nada: “o eterno retorno”. Esta é a forma mais extrema do niilismo: o nada [a ausência de sentido] eterno! Forma europeia do budismo: a energia do saber e da força impõe esta crença. Esta é a mais científica de todas as hipóteses possíveis. Negamos os últimos fins: se a existência tivesse um, ele deveria ter sido já alcançado."(in: O niilismo europeu Lenzer Heide: 10 de junho de 1887).

Para os que gostam de Nietiszche, talvez haja surpresa na ligação da sua filosofia com o budismo e, mais interessante, no seu caminhar não para a questão do SER, mas, sim, para o problema do NADA, do sem-sentido, do vazio absoluto.

O mais interessante, ao fim e ao cabo, é que todo o pensar de Nietszche seja justamente por negar a possibilidade de um pensar racional e com sentido. É dizer, na frase "nada tem sentido" há uma contradição lógica; a própria frase reivindica um sentido e uma aceitação geral. É que o cético quer que todos tenham CERTEZA DO PRÓPRIO CETICISMO!

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