domingo, 26 de fevereiro de 2012

Era para ser...

Era para ser como o encontro do rio com o mar. A convulsão do encontro antes da calmaria profunda, que é a vocação dos amantes.

Era para ser como um sorriso aberto, largo, pleno, do que se deixou encantar pela entrada dos olhos, pelo que se viu esperado e achado entre as esquinas da vida.


Era para ser como a estrela primeira a brilhar, quando a tarde começa a dormir e a noite lhe toma o lugar e ilumina o céu com o descortinar das estrelas.


Era para ser como um sonho bom, que deleita o sono profundo e faz com que o acordar seja pesaroso e triste.

Era para ser como a alegria de um momento que se eterniza em nós, para além do tempo e das vicissitudes da vida.

Era para ser... E ao não ser, tanto se perdeu, tanto ficou por ser vivido e feito. E restou o sorriso que não veio, o olhar que não brilhou, a estrela que ficou submissa às nuvens, a alegria que não se viveu.

E a vida seguiu assim, como uma nau sem velas, levada pelo fluxo das marés, sem ter sonhos para sonhar e terras novas a descobrir.

E veio o tempo... E ao olhar para trás, tudo era apenas a ausência do que não foi. E o viver - esse dom maravilhoso - ficou como um projeto não realizado, um passar de dias sem sentido e sem fé. E tudo era nada, e tudo era desilusão, e tudo era a certeza dos erros das dúvidas e dos medos.

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

DEUS, O SER, O NADA

Abandonar quem somos, fundir-se à substância de onde viemos e para onde voltaremos, sair de si e abandonar-se cada vez mais, até que os nossos sentidos se esvaziem, até que possamos passo a passo ir negando a nossa realidade física, a dor, o prazer, caminhando para fazer parte da verdadeira realidade. Negar-se, esvaziar-se, dessubjetivar-se. A isso, no budismo, chama-se NIRVANA. Com esse estado de liberação, quebra-se a roda do karma, interrompendo o processo de contínuos renascimentos. É dizer, para essa visão de mundo, o caminho da libertação é o caminho da autonegação. O problema do SER reduz-se a um falso problema, a um estado em que o self, o eu, simplesmente deixou-se absorver em uma correnteza vital.

No NIRVANA, portanto, estaríamos libertos da tirania do ego, da ignorância, da ilusão e da dor. Mas esse libertar-se, insista-se, é o negar-se como pessoa, como identidade. Cada indivíduo tem um espírito que retorna à Fonte de Vida ou Fonte do Espírito para tornar-se uno. Não existiriam almas individuais; haveria uma unidade vital em que o ganhar é simplesmente perder-se de si mesmo.

É um traço comum das religiões orientais o PANTEÍSMO, que é a crença de que Deus é tudo e todo mundo e que todo mundo e tudo é Deus. É dizer, haveria um único ser; seríamos todos deuses, cada qual fazendo parte de um único ser. Como tudo é tudo, o próprio panteísmo dissolve o problema do ser pela base; o ser é o todo. Lembro-me, assim, de uma frase precisa: "onde tudo é tudo, nada é nada!".

No PANTEÍSMO, criador e criatura são uma só e mesma coisa. Não há lugar para Deus no panteísmo; Deus é tudo. Sendo tudo, nada é! Como diz o ateu Arthur Schopenhauer ("Algumas palavras sobre o panteísmo"): "Contra o panteísmo, sustento principalmente que ele não diz nada. Chamar Deus ao Mundo não significa explicá-lo, mas apenas enriquecer a língua com um sinônimo supérfluo da palavra Mundo. Se dizeis “o Mundo é Deus” ou “o Mundo é o Mundo”, dá no mesmo. Quando partimos de Deus como se ele fosse o dado e o a-ser-explicado, e dizemos portanto: “Deus é o Mundo”; então numa certa medida existe uma explicação, ao se reconduzir "ignotum a notius": mas trata-se somente de uma explicação de vocabulário. Porém, quando se parte do efetivamente dado, portanto o mundo, e se afirma “o Mundo é Deus”, então se torna claro que com isto não se diz nada, ou ao menos que se explica "ignotum per ignotius" [O desconhecido pelo mais desconhecido]."

O curioso é que muitos, falando em nome do SER, negam justamente o individual, o subjetivo, o self, o que há de fundamental na criação: a criatura! Somos criaturas, somos justamente um projeto pendente de realização, criados com a liberdade de dizer "sim"ou "não". E se esse é o nosso desafio, é também o maior drama. Deus nos concedeu o livre arbítrio até mesmo para negá-lo, para maldizê-lo, para dele fugir.

E tem uns bobalhões que são críticos da fé alheia, que verbaram a FÉ IMPUDICA NA AUSÊNCIA DA FÉ, sendo mais dogmáticos que o mais míope fundamentalista religioso. Negar Deus é apenas a fé no NADA, no sem-sentido, no desespero. É, também isso, creiam-me!, uma forma de fé. E se for sincera, autêntica, é a fé mais dolorosa que pode alguém sentir.

Ah, Nietzsche, com seu niilismo profundo, não tardou em chamar o budismo de "nostalgia do nada", em um texto seu sobre niilismo e cristianismo: "O budismo hindu não tem atrás de si uma evolução completamente moral, esta é a razão por que não há nele, no seu niilismo, senão uma moral não-superada: existência como punição e existência como erro combinadas e, por conseguinte, o erro como punição — apreciação de valor moral."

E daí, justamente dessa dolorosa desilução de Nietszche, que encontra amparo no budismo contra o cristianismo, ele saca a mais desesperadora certeza: nada tem sentido! Diz ele:

"Pensemos este pensamento na sua mais terrível forma: a existência, tal como ela é, privada de sentido e de finalidade, mas se repetindo inelutavelmente, sem acabar no nada: “o eterno retorno”. Esta é a forma mais extrema do niilismo: o nada [a ausência de sentido] eterno! Forma europeia do budismo: a energia do saber e da força impõe esta crença. Esta é a mais científica de todas as hipóteses possíveis. Negamos os últimos fins: se a existência tivesse um, ele deveria ter sido já alcançado."(in: O niilismo europeu Lenzer Heide: 10 de junho de 1887).

Para os que gostam de Nietiszche, talvez haja surpresa na ligação da sua filosofia com o budismo e, mais interessante, no seu caminhar não para a questão do SER, mas, sim, para o problema do NADA, do sem-sentido, do vazio absoluto.

O mais interessante, ao fim e ao cabo, é que todo o pensar de Nietszche seja justamente por negar a possibilidade de um pensar racional e com sentido. É dizer, na frase "nada tem sentido" há uma contradição lógica; a própria frase reivindica um sentido e uma aceitação geral. É que o cético quer que todos tenham CERTEZA DO PRÓPRIO CETICISMO!

Recuperando

Sou grato ao meu pai por tudo. Pelos apertos que me deu, para que fosse um homem responsável; pela orientação que deu, para que amasse Cristo e a Igreja; pelos livros que deu, quando os recursos minguavam com os desgovernos e os atrasos dos pagamentos do Estado. Sou grato pelo que não me deu, porque não pode. Sou grato por ter me feito um homem, em todos os sentidos da palavra. Meu pai nunca aceitou moleques; nunca compactuou com a preguiça, a irresponsabilidade, a covardia e a desonestidade. "Não seja uma pessoa com a cara para trás", contra a covardia. "O trabalho dignifica o homem e as coisas altas e lustrosas - repetindo Camões - só se alcançam com trabalho e fadiga", contra a preguiça e a irresponsabilidade. "Elas poderam. Eles poderam. Por que eu não posso?", contra a autocompaixão e o complexo de vira-lata. "Sem Jesus Cristo nossa vida não tem sentido", pela nossa conversão.

"Recuperando!" Esse era o meu novo nome quando fiquei em recuperação no 1º ano científico do Marista. Ele me rebatizou. Deixei de ser Adriano, perdi a identidade: "Recuperando - diazia-me à mesa -, passe a menteiga!", "Recuperando, nada de televisão. Vá estudar!". Nunca mais fiquei em recuperação em nada na vida; os livros passaram a ser meus amigos definitivos, tendo eu cumprindo a promessa que lhe fiz, logo após passar na prova de recuperação em química: "Papai, o senhor mais nunca reclamará de mim por não estudar. Mas lhe digo: haverá um dia que o senhor reclamará porque eu estudo demais!". Esse dia, um dia, chegou. E eu o lembrei da promessa e continuei estudando...

Papai é um homem inteiro, com todas as suas limitações e contradições. É um Homem, na acepção da palavra. Seus filhos não poderão nunca reclamar da omissão paterna. Nunca poderão dizerem-se frustrados por causa do pai. Somos, os quatro, frutos das nossas opções, acertos e desacertos. Mas nunca erramos porque ele se omitiu. Quando passei no concurso para juiz e não quis assumir, ele me orientou a experimentar a carreira. Quando quis sair, ele me orientou a esperar maturar a idéia. Quando sai, ele rezou por mim e esteve ao meu lado. Nuna me chamou de louco ou de irresponsável. Confiou nas minhas escolhas, porque confiava na educação que me havia dado. Se fosse um frustrado hoje, não seria por causa dele; teria toda a responsabilidade. Como sou um profissional feliz, sou-lhe grato por não ter me amarrado em uma carreira digna e importantíssima, com a qual ele próprio sonhara para ele, mas que não me realizava.

"Recuperando!", ouço a voz dele, chateado comigo. Mas do que a voz, o olhar de desapontamento. Era como se ele se perguntasse: onde foi que errei com esse menino? Eu respondo: em nada, meu pai, porque todos os seus erros foram para o nosso bem! Suas noites trabalhando no entroncamento de Penedo, como fiscal de renda, mesmo sem uma boa saúde, não foram em vão; sua preocupação em ser exemplo para os filhos, tampouco. As vezes em que o senhor e a mamãe contavam, na ponta do lápis, o que poderiam comprar para a gente, renunciando muitas vezes o que seria importante para vocês, valeu a pena: seus filhos testemunham o amor de vocês! Somos o que somos, vencemos na vida, porque lutamos; nada caiu do céu, a não ser a graça divina de termos vocês como pai e mãe.

Lembro-me do dia que uma amigo meu me questionou, na faculdade, porque estudava tanto. Ele, rico; eu, filho de funcionários públicos em um Estado que sequer pagava em dia. Respondi: "Porque o estudo é o meu trabalho!" Nada mais parecido com Lourival Nunes da Costa. O homem para quem o maior elogio dado a outro era: fulano é trabalhador! Seu caçula trabalha tanto, que às vezes vai além dos seus limites. Porque um homem é o seu trabalho, a sua luta. Sou um filho marcado por meu pai. Justamente o filho que mais o questionava, que mais resistia às suas orientações...

Escrevo essas linhas públicas com lágrimas. Sim, lembranças e mais lembranças me invadem. As pisas de cinturão (que os psicológos de hoje condenam, por sentimentalóides) deram-me fibra; os puxões de orelha, deram-me limites; os conselhos e o diálogo constante, deram-me a capacidade de pensar e discernir; a vergonha de beijar um filho, deu-me a coragem de beijar o pai e dizer que o amo; as limitações de saúde e a superação, ensinaram-se que o homem se faz na rinha, sem queixas miúdas e com a coragem de vencer; os sonhos impossíveis pelas próprias limitações da vida ensinaram-me que os sonhos que valem são os possíveis, os que podemos transformar em realidade, após a conquista. Os sonhos irrealizáveis não são sonhos; são miragens que nos afastam da realidade e nos enganam. Por isso, o meu pai é o meu herói. Por isso, o amo profundamente, porque sou o que ele me possibilitou ser, a partir das bases sólidas que ele me deu.

Palavras

As palavras têm sentido, ou não devem ser pronunciadas. Quando falamos, queremos significar algo. Se digo "estou cansado", quero dizer justamente isso. Porque quando falo quero sempre significar algo para alguém; falar é já sempre buscar o entendimento acerca de algo no mundo, salvo quando se fala justamente com a finalidade de ser ambíguo.

As palavras são importantes, portanto, porque são veículos que estão carregados de significados, emoções, sentimentos. Podem ser tão intensas em certos contextos, que se convertem em lâmina. Ferem, rasgam, cavam fundo os recônditos da alma.

Pior do que a palavra dita, talvez, só mesmo aquela silenciada. Aquela que não foi proferida, mas foi pensada pelo falante e intuída por quem seria o ouvinte. É a palavra que não se fez presente, mas a sua ausência é eloquente, quase ensurdecedora.

Sim, as palavras fazem o mundo. Elas constroem a nossa realidade pensada, desmascarando muitas vezes sentidos expressados, que escondem sentidos outros, os reais, que elas, as palavras, por vezes são usadas para disfarçar.

Bem, palavras... Pra que palavras, afinal? Para que a poesia converta a realidade em música, diria o poeta, não sem um sorriso maroto no canto dos lábios.

Râmana Mahârshi: O Ser e o Pensamento

Por que será que a cultura oriental (leia-se, os mestres do yoga e quejandos) têm tanto medo do conhecimento e do pensamento? Sempre me incomoda quando leio essa forma de espiritualidade oriental a tese de que (a) devemos abdicar do eu (ego, self) em favor de um fluxo existencial (que pode ser o Nirvana ou o Ser), e (b) de que o pensamento ou conhecimento devem ser descartados. Ou seja, a realização estaria numa espécie de autonegação.

Um mestre chegou a afirmar que "O mero aprendizado de livros não é de grande utilidade. Depois da Realização todas as cargas intelectuais viram fardos a serem jogados fora." Essa lógica rejeita algo fundamental: a cultura. Ou seja, tudo o que nós, quando nos interrelacionamos no decorrer da história, criamos como marcas da nossa humanidade simplesmente deveria ser "jogado fora".

Não é à toa que esse mesmo grande mestre indiano afirma que a cultura é um mal: "Os pouco instruídos se libertam mais facilmente do que aqueles cujo ego não se abrandou apesar de toda a sua cultura. Os chamados homens sem cultura estão livres do domínio implacável do demônio da auto-fascinação; eles estão livres da doença da turbulência de pensamentos e palavras; eles estão livres de correr atrás de riqueza. É de mais de um mal que estão livres". É dizer, para a nossa realização deveríamos buscar o SER, que nada mais seria do que a nossa autonegação, a rejeição da cultura na qual estamos inseridos e, mais ainda, fugir dos pensamentos e palavras, que apenas nos destraem.

Evidentemente que poderíamos abrir um debate sobre o valor heurístico de cada proposição desse mestre indiano, que cito como exemplo. Mas logo ele, e com ele os seus discípulos, rejeitariam o debate, ao argumento de que o pensamento e a cultura são um mal. Aliás, tal afirmação é feita por esse mestre que cito, sem rebuços: "Esses tipos de disputa são infindáveis. Não participe delas. Ao invés disso, volte a sua mente para o interior e ponha um fim a tudo isso. Todas as disputas são fúteis". Bem, se toda a discussão cessa desde o início, abdica-se de qualquer racionalidade e, em verdade, resta apenas o irracionalismo puro e simples que se arroga uma clarividência que independe do pensamento, das palavras, da razão ou de qualquer lógica. A isso, muitos adotam como uma suprema sabedoria!
Para esse mestre indiano, cuja obra estou lendo, busca explicar o que seria para ele o SER. Diz ele: "O Brahman ou Eu Real é como uma tela de cinema, e o mundo é como as imagens que aparecem nela. Você só vê a imagem enquanto há uma tela. Mas quando o próprio observador se torna a tela apenas o Eu Real permanece". As palavras, que bem poderiam ser enigmáticas, querem dizer o seguinte: o observador deve se perder na realidade que sustenta aquilo que vemos. O mundo, na verdade, não é o real. Nós não somos real (inegável o platonismo aqui), mas o SER - a tela de cinema - só pode ser alcançado quando o observador deixa de existir e passa a fazer parte da tela. Ou seja, o eu tem que se dissolver para tornar-se o EU REAL, que nada mais é do que uma realidade sem o ego, o eu, sem o que me faz pessoa.

Diz o mestre indiano: " Apenas o Eu existe e é real. O mundo, o indivíduo e Deus são criações imaginárias dentro do Eu". Essa negação do indivíduo, do self, termina nos levando para uma negação da história, da cultura e de tudo o que nos cerca. A matéria seria um mal; meu corpo, a minha casa, a "realidade" que me cerca me prenderia e deveria ser destruída para a minha libertação, inclusive de mim mesmo. Como diz esse mestre indiano, "O indivíduo que identifica a sua própria existência com a existência da vida no corpo físico, e o toma como “eu”, é chamado de ego. O Eu Real, que é pura Consciência, não tem sentimento de ego ligado ao corpo. Nem pode o corpo físico, que é por si só inerte, ter esse sentimento de ego. Entre os dois – ou seja, entre o Eu ou pura Consciência e o corpo físico inerte – surge misteriosamente a sensação de ego, ou noção de ‘eu’, este híbrido que não é nenhum dos dois e que floresce como ser individual. Este ego ou ser individual é a raiz de tudo o que é fútil e desagradável na vida. Por isso ele deve ser destruído por qualquer meio possível; então permanece apenas o brilho d’Aquilo que sempre é. Isso é a Libertação, Iluminação ou Auto-Realização".

Ora, para a nossa realização deveríamos nos negar? A realidade verdadeira estaria além de nós, embotada por nossa mente, por nossos pensamentos, pela reflexão que fazemos sobre o que nos cerca e que chamamos de "realidade"? Ou seja, para descobrirmos o SER deveríamos negar quem somos, abdicar da nossa cultura, deixar de pensar e refletir?

A única resposta para essa forma de espiritualidade é justamente "sim". Afinal, para o mestre indiano, fazendo inclusive uma leitura equivocada da Bíblia, "A essência da mente é apenas atenção ou consciência. Entretanto, quando o ego nubla a mente, esta adota as funções de raciocínio, pensamento e percepção. A mente universal, não sendo limitada pelo ego, não tem nada exterior a si, e portanto ela é apenas consciência. É isso o que a Bíblia quer dizer com “EU SOU O QUE EU SOU”. Ou seja, o pensamento, a percepção, as funções intelectivas da mente, seriam um mal do ego, do EU aprisionado em um corpo, nublado do Eu Real. Não existiria, a rigor, o self, o indivíduo, que seria o embotamento do Eu Real, o Nirvana budista, onde nos perderíamos (ou nos acharíamos) em um fluxo existencial, no verdadeiro SER.

Para chegarmos ao verdadeiro SER devemos abandonar o ser-que-somos, o ser-aí (Dasein), o ser na história, na temporalidade. Voltamos a um ser metafísico e desencarnado, que rejeita a matéria, a vida vivida, o pensamento pensado. Como diz o mestre indiano: "Isso acontece porque essa percepção de “eu” está associada a uma forma, talvez a forma do corpo físico. Mas nada deveria ser associado ao Eu puro. O Eu Real é a Realidade pura em cuja luz brilha o corpo, o ego, e tudo mais. Quando todos os pensamentos são aquietados sobra apenas a pura Consciência".
Estou conversando sobre o livro "Os Ensinamentos de Ramana Maharshi em Suas Próprias Palavras". O livro pode ser lido integralmente nesse link (aqui).

Râmana Mahârshi é considerado um homem santo do sul da Índia, falecido em 1950. Ele não deixou livro escrito, sendo o seu pesamento compilado por discípulos. A sua vida, o seu exemplo, gerou inúmeros seguidores, sendo ainda hoje seguido e respeitado.

Os comentários que tenho feito sobre Krishnamurti e, agora, sobre Râmana Mahârshi, são respeitosas análises do pensamento dessa espiritualidade oriental que ainda hoje fascina a muitos, sobretudo como fonte de profunda sabedoria. É preciso, porém, além da fé que desperta - o que é positivo! - passar pelo crivo da razão essa forma de sabedoria, como se fez com o cristianismo nesses 2 mil anos de história.

E há muito para refletirmos com abertura e busca sincera da verdade em nossas vidas. Que nada aqui seja visto como desrespeito, mas como uma abertura sincera a um importante diálogo
 

terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

Livros


Havia terminado o curso de Direito. Fazendo o Exame de Ordem vi no mural um pequeno aviso: um advogado vendia os 60 volumes do Tratado de direito privado. Fui para casa ansioso. Sabia que os servidores públicos estavam numa fase difícil, com atrasos de pagamentos. Comprar uma coleção daquelas não seria fácil. No jantar, comentei com o papai sobre aquela possibilidade. Ele sabia o quanto lia Pontes de Miranda, sempre através de cópias ou empréstimos. Era eu pontesiano, estudando com profundo interesse o pensamento genial do jurista alagoano, um dos maiores gênios que as letras jurídicas produziram.

Eu, é certo, vinha me esforçando para comprar meus livros sem espremer tanto o orçamento lá de casa. Afinal, era frequentador assíduo da extinta livraria Caetés, onde comprava excessivamente livros, jurídicos ou não. Certo mês, o papai me chamou a atenção, porque fiz gastos elevados demais: "Filho, estude, compre seus livros, mas combine antes, porque vocês são quatro filhos. Assim, você desestrutura o orçamento de casa". De fato, a minha avidez precisava ser ponderada.

Para não deixar de comprar meus livros sem prejudicar os outros irmãos, encontrei uma solução: dar aulas de reforço a meninos e meninas da minha rua. E foi assim que virei professor de matemática (matéria que detestava), ensinando alunos em apuros, com baixo aproveitamento. Seis meses assim, que me renderam dinheiro para torrar em livros. E - que bom! - meus alunos passaram de ano com boas notas.

Bem, mas comprar a obra de Pontes de Miranda estava além das minhas possibilidades. Já gastava com livros a minha mesada, o dinheiro que ganhava dando aulas e o que mais os meus pais davam para pagar outros livros que eu comprava. Aliás, eu andava sem dinheiro. Tudo era para livros. A minha namorada, quando saíamos, era quem pagava a conta. Ela já sabia desse pequeno detalhe...

O papai me olhou e disse que iria comigo ver o dono da coleção de Pontes de Miranda. Fiquei numa expectativa absurda. Quase não dormi. E fomos lá, juntos, no dia seguinte. A coleção era muito conservada; os livros, pensei eu, nunca foram abertos e lidos. O papai tentou negociar. O advogado, dono do Tratado, mostrou-se irredutível. Precisava do dinheiro e não abria mão do valor. Conversa vai, conversa bem, ele fez a seguinte proposta ao papai: "O sr. leva o Tratado por esse valor e eu cedo, sem custos adicionais, esses outros livros", disse, apontando para uma outra obra de Pontes de Miranda, 17 tomos, os Comentários ao Código de Processo Civil. Fiquei doido. Querias muito também aquela obra.

O papai me fitou. Viu o brilho nos meus olhos. Não me perguntou nada. Minha expressão dizia-lhe tudo. Ele virou-se para o advogado e concordou. Comprou os livros, realizando o meu sonho. Lembro-me, não sem emoção, daquele momento: levando os livros para o carro, colocando-os na mala, ao ponto de enchê-la: 60 tomos do Tratado de direito privado e mais 17 dos Comentários ao Código de Processo Civil. E o advogado, querendo livrar-se dos livros da sua biblioteca, ainda me deu algumas outras boas obras, que me servem até hoje.

Foi um sonho. Arrumar aqueles livros em estantes compradas para recebê-los, passar a ler as obras podendo riscá-las, fazendo anotações. Uma alegria imensa. E essas obras ainda hoje são lidas, consultadas, fazendo parte da minha formação intelectual. Foi estudando Pontes que pude criar minha teoria da inelegibilidade.

Bem, aquele esforço do papai, naquele momento difícil, foi fundamental para a minha formação. Achavam, ele e a mamãe, que eu me excedia com tanta leitura e livros, mesmo tendo sido essa a educação que deram. Mas eu era demais da conta; virava noites lendo. Mesmo sem entender, apoiaram, porque a causa era justa. E foi por causa deles que pude me desenvolver intelectualmente.

Lembrei dessa história hoje e quis compartilhar. Sou grato demais aos dois, que me deram tudo o que precisava para ser gente e ter valores.

Há dias...

Há dias sofridos. Dias em que vemos nossos sonhos irrealizáveis.
Há dias em que o frescor da manhã não nos atinge, em que a sua luz suave parece distante.
Há dias em que olhamos sem ver, porque nossa mente está nublada.
Há dias em que nosso sorriso é sem apelo, protocolar, quase uma satisfação para os que nos rodeiam.
Há dias em que nem sorriso há.
Há dias em que somos o copo vazio, posto em um canto qualquer. Somos a dor e o silêncio, a sombra e a palavra não-dita. 
Há dias em que somos a saudade, a dor indolente do fastio de viver, a roupa molhada na cerca suplicando o sol, o vento assobiando as sujeiras das ruas...
Há dias em que a saudade aperta.
Há dias em que a melancolia nos toma e se apropria de nós. Em que nos desconhecemos e não sabemos quem somos, o que queremos, aonde vamos. 
Quando estamos assim, nesses dias grizes, devemos parar, olhar para o céu e agradecer.
Rezar com fé, com serenidade, e bendizer a Deus por estarmos vivos, com as nossas limitações e virtudes, com as nossas dores e sonhos, com todo o futuro à nossa espera para ser conquistado.

Harmonia de quereres

Na boca há de haver um sorriso doce, a expressão perfeita do acolhimento. Se carnes a mais houver, que haja. E o molhado do beijo é fundamental, para que tudo se misture numa harmoniosa troca de líquidos e línguas. E que, sendo assim, não faltem os suspiros fundos, a emoção incontida, o bater descompassado do coração, o ferver do sangue, ao ponto limite do ataque cardíaco.

Que os olhos se encontrem e se falem sem palavras. Que se digam tudo, numa obscena invasão da alma, quase se apropriando dos pudores e vergonhas alheias, numa troca profunda dos recônditos labirintos do eu. E desse olhar penetrante, que haja a desventura do perder-se no achar-se noutra alma, e que tudo seja assim, como se nada fosse fora daquele instante único.

Os gestos com as mãos devem falar também. Não tanto pelo atrevimento, mas pela expressão sincera de um querer que não se esconde de si mesmo, revelada na ansiedade de uma fome descontrolada. Mãos suaves que se deixam soltas à procura de um destino onde repouse o desvelar da sua emoção. Se não vão por si mesmas, fingem-se alheias e se deixam encaminhar.

O cruzar de pernas é fundamental. Feminino, o gesto já revela toda uma sensualidade, em liturgia perfeita e ortodoxa. É toda uma odisséia o pousar uma perna sobre a outra, como quem se prepara para acomodar um violão a ser dedilhado em notas docemente declinadas. Tão instigante quanto esse movimento, apenas o consequente gesto inverso, numa atitude cuidadosa de convite a um momento mais delicado.

E, finalmente, a entrega. Que não haja regras, nem manual de instrução nem tampouco normas heterônimas de comportamento. Se houver etiqueta, que seja pouca, porque em demasia não se chega ao estado de ebolição, quando não mais se racionalizam os gestos. O amor muito educado é como vinho em que se despejou água: tirou-lhe o sabor, a força e a tonalidade.

E que tudo seja assim: uma perfeita harmonia de quereres, em que o certo seja o permitido e buscado, entre olhares, mãos, pernas e coração. E o final seja a fadiga plena, o olhar cúmplice e um novo começar, até que esmagados de tantos recomeços, haja o silêncio das onomatopéias e possam, enfim, repousar do amor consumado.

Amar se aprende amando


Amar se aprende amando. Não há receita. É uma descoberta a dois, na aventura do outro. Aventura que pede apenas uma coisa: a sincera busca do entendimento. Um olhar de si mesmo que não exclua a quem se ama. Antes, seja includente. Sou feliz, quero ser live, mas na presença do outro, mesmo ausente. Ou seja, o outro, por ser amado, está sempre para mim como realidade, como necessidade viva.

O amor que não pensa no outro, que não o inclui na pauta de decisões básicas da vida, amor não é. Porque não cuida, não se preocupa, não importa. Há uma ausência de apropriação do sentir no lugar do outro, como se fora o outro, ao menos para entendê-lo e trazer para si.

Quem ama cuida, ainda que tome decisões que machuquem. Mas ao fazê-lo, criou pontes para a construção do caminho conjunto, naquilo que for caro a ambos. Abre-se mão de algo menor para a conquista de uma relação madura, profunda e inteira.

E amando, constroem-se e se deixam construir, saindo do comodismo do "eu sou assim", "eu nasci assim", "você me conheceu assim", para uma sadia construção de caminhos comuns, sem que um abra mão de ser um em função do outro. Um e outro permanecem um e outro, ou não haveria polaridade, o eu-tu, mas numa constante construção recíproca e contínua. Isso, sim, é amar de modo maduro.

Amor glutão

O amor pede o encontro de almas em carne e coração. Amor desencarnado não deu o passo para o pertencimento de vidas.

O amor autêntico, entre homem e mulher, é glutão. Tem aquela fome indomável, em que se pede o antepasto, o pasto e a sobremesa, sem que isso sacie todo o apetite, que se renova com pressa deseducada, soterrando etiquetas e salamaleques, tão ao gosto dos que racionalizam demais o sentir.

Amor pede pele, cheiro e litígio de olhares certeiros, incisivos e profundos. E o tempo nada mais é e se conta, senão a partir da ausência ou presença de quem se ama; ali, o tempo é largo e lerdo; aqui, fagueiro e célere, sumindo num repente indesejado.

Mas o mais interessante do amor: a sua busca pelo objeto amado. Ele não se compadece com a imobilização, a inércia, o esquecimento ou a erosão do tempo. Ele é a um só tempo arco e flecha; é o que lança e se faz lançar. Por isso, amor pede ciúme (no limite certo, no tempero exato), para que se lance sempre, busque sem nunca acomodar-se.

Sim, amar é viver, nutrir, buscar, inquietar-se. E se não mais for, não é!