Por que será que a cultura oriental (leia-se, os mestres do yoga e
quejandos) têm tanto medo do conhecimento e do pensamento? Sempre me
incomoda quando leio essa forma de espiritualidade oriental a tese de
que (a) devemos abdicar do eu (ego, self) em favor de um fluxo
existencial (que pode ser o Nirvana ou o Ser), e (b) de que o pensamento
ou conhecimento devem ser descartados. Ou seja, a realização estaria numa espécie de autonegação.
Um mestre chegou a afirmar que "O mero aprendizado de livros não é de grande utilidade. Depois da Realização todas as cargas intelectuais viram fardos a serem jogados fora." Essa
lógica rejeita algo fundamental: a cultura. Ou seja, tudo o que nós,
quando nos interrelacionamos no decorrer da história, criamos como
marcas da nossa humanidade simplesmente deveria ser "jogado fora".
Não é à toa que esse mesmo grande mestre indiano afirma que a cultura é
um mal: "Os pouco instruídos se libertam mais facilmente do que aqueles
cujo ego não se abrandou apesar de toda a sua cultura. Os chamados homens sem cultura estão livres do domínio implacável do demônio da auto-fascinação; eles estão livres da doença da turbulência de pensamentos e palavras; eles estão livres de correr atrás de riqueza. É de mais de um mal que estão livres". É dizer, para a nossa realização
deveríamos buscar o SER, que nada mais seria do que a nossa autonegação,
a rejeição da cultura na qual estamos inseridos e, mais ainda, fugir
dos pensamentos e palavras, que apenas nos destraem.
Evidentemente que poderíamos abrir um debate sobre o valor heurístico de
cada proposição desse mestre indiano, que cito como exemplo. Mas logo
ele, e com ele os seus discípulos, rejeitariam o debate, ao argumento de
que o pensamento e a cultura são um mal. Aliás, tal afirmação é feita
por esse mestre que cito, sem rebuços: "Esses tipos de disputa são infindáveis. Não participe delas. Ao invés disso, volte a sua mente para o interior e ponha um fim a tudo isso. Todas as disputas são fúteis". Bem, se toda a
discussão cessa desde o início, abdica-se de qualquer racionalidade e,
em verdade, resta apenas o irracionalismo puro e simples que se arroga
uma clarividência que independe do pensamento, das palavras, da razão ou
de qualquer lógica. A isso, muitos adotam como uma suprema sabedoria!
Para esse mestre indiano, cuja obra estou lendo, busca explicar o que
seria para ele o SER. Diz ele: "O Brahman ou Eu Real é como uma tela de
cinema, e o mundo é como as imagens que aparecem nela. Você só vê a
imagem enquanto há uma tela. Mas quando o próprio observador se torna a
tela apenas o Eu Real permanece". As palavras, que bem poderiam ser
enigmáticas, querem dizer o seguinte: o observador
deve se perder na realidade que sustenta aquilo que vemos. O mundo, na
verdade, não é o real. Nós não somos real (inegável o platonismo aqui),
mas o SER - a tela de cinema - só pode ser alcançado quando o observador
deixa de existir e passa a fazer parte da tela. Ou seja, o eu tem que
se dissolver para tornar-se o EU REAL, que nada mais é do que uma
realidade sem o ego, o eu, sem o que me faz pessoa.
Diz o
mestre indiano: " Apenas o Eu existe e é real. O mundo, o indivíduo e
Deus são criações imaginárias dentro do Eu". Essa negação do indivíduo,
do self, termina nos levando para uma negação da história, da cultura e
de tudo o que nos cerca. A matéria seria um mal; meu corpo, a minha
casa, a "realidade" que me cerca me prenderia e deveria ser destruída
para a minha libertação, inclusive de mim mesmo. Como diz esse mestre
indiano, "O indivíduo que identifica a sua própria existência com a
existência da vida no corpo físico, e o toma como “eu”, é chamado de
ego. O Eu Real, que é pura Consciência, não tem sentimento de ego ligado
ao corpo. Nem pode o corpo físico, que é por si só inerte, ter esse
sentimento de ego. Entre os dois – ou seja, entre o Eu ou pura
Consciência e o corpo físico inerte – surge misteriosamente a sensação
de ego, ou noção de ‘eu’, este híbrido que não é nenhum dos dois e que
floresce como ser individual. Este ego ou ser individual é a raiz de
tudo o que é fútil e desagradável na vida. Por isso ele deve ser
destruído por qualquer meio possível; então permanece apenas o brilho
d’Aquilo que sempre é. Isso é a Libertação, Iluminação ou
Auto-Realização".
Ora, para a nossa realização deveríamos nos
negar? A realidade verdadeira estaria além de nós, embotada por nossa
mente, por nossos pensamentos, pela reflexão que fazemos sobre o que nos
cerca e que chamamos de "realidade"? Ou seja, para descobrirmos o SER
deveríamos negar quem somos, abdicar da nossa cultura, deixar de pensar e
refletir?
A única resposta para essa forma de espiritualidade é
justamente "sim". Afinal, para o mestre indiano, fazendo inclusive uma
leitura equivocada da Bíblia, "A essência da mente é apenas atenção ou
consciência. Entretanto, quando o ego nubla a mente, esta adota as
funções de raciocínio, pensamento e percepção. A mente universal, não
sendo limitada pelo ego, não tem nada exterior a si, e portanto ela é
apenas consciência. É isso o que a Bíblia quer dizer com “EU SOU O QUE
EU SOU”. Ou seja, o pensamento, a percepção, as funções intelectivas da
mente, seriam um mal do ego, do EU aprisionado em um corpo, nublado do
Eu Real. Não existiria, a rigor, o self, o indivíduo, que seria o
embotamento do Eu Real, o Nirvana budista, onde nos perderíamos (ou nos
acharíamos) em um fluxo existencial, no verdadeiro SER.
Para
chegarmos ao verdadeiro SER devemos abandonar o ser-que-somos, o ser-aí
(Dasein), o ser na história, na temporalidade. Voltamos a um ser
metafísico e desencarnado, que rejeita a matéria, a vida vivida, o
pensamento pensado. Como diz o mestre indiano: "Isso acontece porque
essa percepção de “eu” está associada a uma forma, talvez a forma do
corpo físico. Mas nada deveria ser associado ao Eu puro. O Eu Real é a
Realidade pura em cuja luz brilha o corpo, o ego, e tudo mais. Quando
todos os pensamentos são aquietados sobra apenas a pura Consciência".
Estou conversando sobre o livro "Os Ensinamentos de Ramana Maharshi em Suas Próprias Palavras". O livro pode ser lido integralmente nesse link (
aqui).
Râmana Mahârshi é considerado um homem santo do sul da Índia, falecido
em 1950. Ele não deixou livro escrito, sendo o seu pesamento compilado
por discípulos. A sua vida, o seu exemplo, gerou inúmeros seguidores,
sendo ainda hoje se
guido e respeitado.
Os comentários que tenho feito sobre Krishnamurti e,
agora, sobre Râmana Mahârshi, são respeitosas análises do pensamento
dessa espiritualidade oriental que ainda hoje fascina a muitos,
sobretudo como fonte de profunda sabedoria. É preciso, porém, além da fé
que desperta - o que é positivo! - passar pelo crivo da razão essa
forma de sabedoria, como se fez com o cristianismo nesses 2 mil anos de
história.
E há muito para refletirmos com abertura e busca
sincera da verdade em nossas vidas. Que nada aqui seja visto como
desrespeito, mas como uma abertura sincera a um importante diálogo