sábado, 24 de dezembro de 2011

Fé, linguagem, amor e cultura: do ser ao nada

Um dos grandes movimentos da filosofia ocidental decorreu da descoberta do papel central da linguagem não apenas como instrumento para a comunicação, mas sobretudo como sendo ela a própria realidade. Heidegger cunhou frase lapidar: "Ser que pode ser compreendido é linguagem".

A linguagem, portanto, deixaria de ser o "medium" para ser, ela própria, a realidade. O que vem pela linguagem existe; sobre o que não se pode falar, ou não existe ou é o inefável, como sustentara o primeiro Wittgenstein, já no fecho do "Tratactus logico-philosophicus".

Uma das dimensões fundamentais da linguagem é pragmática. Enquanto a semântica se atém à relação entre o signo e a coisa por ele designado e a sintaxe se prende à relação dos signos consigo mesmo na estrutura expressional, cuida a pragmática da relação dialógica dos atos de fala. A linguagem é uma realidade intersubjetiva, comunitária. Não há linguagem privada; o falar e o pensar ocorre sempre em um processo dialógico, através de uma gramática comum à comunidade do discurso.

Todas as principais experiências humanas reclamam uma expressão em linguagem: o amor, a fé, o desejo, a dor, o sofrimento, a saudade, a alegria... Tudo em nós reclama a expressão, o sair de si mesmo e se fazer compreensível ao outro. Estamos e somos sempre em um profundo e indefectível processo de diálogo: eu-eu, eu-tu, eu-nós.

A fé cristã, por exemplo, desde o seu nascedouro foi comunitária. Após a morte de Cristo, fato histórico que ninguém seriamente duvida - é certo que há sempre uns tolos que ganham dinheiro criando teorias bobas para negar um evento que marcou a história da humanidade -, restavam alguns poucos discípulos seus medrosos e acovardados. Pescadores, homens de pouca cultura e sem prestígio social, foram perseguidos pelos judeus e pelos romanos.

Algo de extraordinário ocorreu. Aqueles homens de nenhum relevo começaram a anunciar um evento sem provas: o Cristo morto havia ressuscitado! A morte fora vencida por ele; a boa nova era justamente um escândalo para os judeus (autoridade religiosa) e uma loucura para os gregos (autoridade intelectual), no dizer preciso de São Paulo. E o anúncio foi marcado pela superação do medo, pelo corajoso enfrentamento e martírio. Pentecostes é esse marco: os homens medrosos saem dos esconderijos e anunciam a ressurreição.

E, desde ali, a fé passou a ser não uma viagem individual, uma experiência pessoal exclusiva. A fé cristã é uma experiência comunitária. NÓS CREMOS, dizem os cristãos desde os primórdios. Crer, ter fé, para os cristãos, por conseguinte, é uma experiência pragmática (no sentido linguístico), em que EU ME INSIRO NUMA VERDADE REVELADA E VIVIDA PELOS QUE CREEM. A fé em Cristo é a fé em uma pessoa encarnada, em uma verdade que se põe para mim de fora para dentro e me invade, me toma, me domina.

A fé não é, portanto, a MINHA FÉ, mas a FÉ DOS CRISTÃOS. A fé não se amolda aos meus pensamentos, não sou nem posso ser seu dono ou proprietário. A fé é uma realidade comunitária, na qual me insiro e me descubro como pessoa e como crente. A fé, então, é uma adesão livre e consciente, apaixonada, mas sempre uma adesão.

Os orientais buscam sempre um outro caminho. A verdade seria sempre uma experiência interna, uma busca em si mesmo. Nós seríamos parte de um todo, do deus que habita em mim e para o qual eu retorno após a morte, me dessubjetivando. Ser feliz seria cada vez mais abrir mão de si mesmo, em um processo de autonegação. E esse processo seria uma viagem interna, uma busca por si mesmo em um processo de abandono do self, do ego.

O pensamento, expressão da linguagem que define o nosso mundo e o nosso ser no mundo, seria um mal a ser deixado de lado. Nosso processo de autonegação implicaria a libertação da mente do próprio ato de pensar. Como disse um guru respeitado nos dias de hoje, com seguidores no Brasil, Jiddu Krishnamurti (+ 1986): "Meditação é libertar a mente de toda desonestidade. O pensamento gera desonestidade. O pensamento, no seu esforço para ser honesto, é comparativo e, portanto, desonesto. (…) Meditação é o movimento dessa honestidade no silêncio".

Tomo ainda a fala de J. Krishnamurti como expressão dessa lógica de autonegação através de processos que visam, através da meditação, a busca do abandono de si mesmo, porque pelo abondono do self alcançaria o fluxo vital do qual faria parte e no qual devo me perder, como um Nirvana budista: "Eu aprenderei como estar quieto; aprenderei como meditar com o objetivo de ficar quieto. Eu vejo a importância de se ter uma mente que seja livre do tempo, livre do mecanismo do pensamento, eu a controlarei, a subjugarei, expulsarei o pensamento. Mas isto ainda é operação do pensamento. Isso está muito claro. Então o que ela deve fazer? Porque um ser humano vive nessa desarmonia, ele deve questionar isso. E isso é o que estamos fazendo. Como começamos a questionar isso, ou no questionar, chegamos a essa fonte. É ela uma percepção, um insight, e esse insight não tem nada, coisa alguma a ver com o pensamento? É o insight o resultado do pensamento? A conclusão de um insight é pensamento, mas o insight propriamente não é pensamento. Assim, eu obtive uma chave para isso. Então o que é insight? Posso convidá-lo, cultivá-lo? Isso é afeição, isso é amor. Quando você fala à minha consciência desperta, ela é dura, esperta, sutil, aguda. E você a penetra, penetra-a com seu ver, com sua afeição, com todo o sentimento que tem. Isso opera, nada mais."

E, adiante, ensina ele, completando a sua compreensão: "Não pode dividir a si mesma como "minha inteligência" e "sua inteligência". Ela é inteligência, não é divisível. Agora ela brotou de uma fonte de energia que dividiu a si mesma..." E segue: "Pensamento, matéria, o mecânico, é energia. Inteligência também é energia. O pensamento está confuso, poluído, dividindo a si mesmo, fragmentando a si mesmo. Portanto eu diria que o pensamento deve estar completamente quieto para o despertar da inteligência. Não pode haver um movimento de pensamento e ocorrer o despertar da inteligência."

Como se observa, há uma imensa diferença entre a fé cristã e o pensamento oriental "lato senso": os orientais negam a individualidade, negam o valor do eu e do pensamento, apontam para o TODO ASSUBJETIVADO como sendo a paz e o destino nosso; o cristão valoriza a subjetividade, a dimensão pessoal do homem, e aponta para a fé como como uma realidade intersubjetiva, em que aderimos a verdade do Cristo que se revela na história e nos convida para um diálogo de amor eterno.

O cristianismo valoriza a criação como um todo: a matéria e o espírito têm o mesmo valor como criação do amor de Deus. Ambos, fraturados pelo pecado, são restaurados pelo amor de Deus, que se esvazia, se encarna e assume a nossa história.

A nossa realização não vem da autonegação, mas da nossa afirmação pessoal e comunitária no amor de Deus. Meditar não é abandonar o pensamento, mas voltar o pensamento para Deus, em um ato de entrega e fé. Não preciso, para ser pleno, "esquecer ou abdicar" do mundo lá fora; a plenitude vem em um processo nunca acabado em nossa vida terrena, fraturada pelo pecado, que se realiza através da ressurreição individual. Ou seja, no cristianismo não me dissolvo em um Nirvana; me realizo em plenitude, em minha individualidade, na profunda relação de amor com Deus e com os demais, em um diálogo eterno e constante.

Ouvi com muita atenção as lições de J. Krishnamurti. Veja um dos seus vídeos mais abaixo. E ao ouvi-lo, vi um bom homem reflitindo, em voz pausada, sobre a negação do pensamento, do que somos em nossa constituição antropológica mais profunda. Segundo ele, como não há pensamento completo sobre nada, não se pode pensar na completude, nem o imensurável. Desse modo, Deus e as religiões seriam criações do pensamento, ideologias que levariam às guerras e à mentira.

Mesmo os relacionamentos mais fraternos seriam produtos do pensamento e levariam, também eles, ao conflito. O fundamental seria "romper com a cadeia da continuidade do ego. Só então é possível viver com outro sem uma sombra qualquer de conflito" (1:18:53 do vídeo). Só abrindo mão do eu que poderia estar sem conflito com o outro. Só na autonegação poderia me afirmar perante o outro sem conflito...


Sinceramente, é uma leitura da vida que expurga como mal a religião, a tecnologia, as relações humanas... O que restaria seria, então, abdicar da própria humanidade para, dissolvendo-se no nada, nada restar de si mesmo!

Aliás,  J. Krishnamurti firma, noutro vídeo em que dialogo com o Pe. Eugene Scharllet, a seguinte definição de liberdade: "Liberdade é a negação de ser condicionado por qualquer cultura, por qualquer divisão religiosa ou política". Ou seja, liberdade seria estar morto, porque estamos inseridos sempre na cultura; a cultura humana é o eixo em que a vida se dá; a linguagem, aliás, é a maior expressão da cultura. Libertar-se da cultura seria simplesmente deixar de pensar, de respirar. Lamentavelmente o tal Pe. Eugene Scharllet é muito fraquinho e não sabe nada da própria fé e da própria religião. Ora, NEGAR A CULTURA SERIA UM ATO DE ESCOLHA FUNDAMENTADO, OU NÃO, PORÉM - salvo em caso de morte ou coma profundo - A ADOÇÃO DE UMA OUTRA CULTURA, DIVERSA DAQUELA NEGADA.

Para Jiddu Krishnamurti, então, existe uma realidade viva, uma totalidade, que só podemos alcançar se nos transformarmos numa espécie de folha de papel em branco, livres de todo o conhecimento e crença em que vivemos; livres, portanto, da cultura. E só podemos alcançar isso através de uma ação individual. E o que seria essa individual? Chama-se individualidade, para ele, "o estado no qual a ação tem lugar através da compreensão liberta de todos os padrões – sociais, econômicos ou espirituais. É a isto que eu chamo a verdadeira individualidade, porque é ação nascida da plenitude do entendimento, ao passo que o egotismo tem as suas raízes na segurança, na tradição, na crença. Por isso a ação induzida pelo egotismo é sempre incompleta, está sempre ligada à luta incessante com sofrimento e dor" (in: "A Arte de Escutar; Stresa, Itália - 1ª palestra 2 de julho, 1933).

Note-se: o mundo da vida ("Die Lebenswelt"), que é a nossa realidade onde nos inserimos como pessoas, onde a nossa existência se dá, teria que ser dissolvido, simplesmente. Filosoficamente, Krishnamurti desconsidera uma das grandes conquistas da filosofia moderna, sobretudo a partir de E. Husserl, que é o conceito de "mundo da vida. Husserl já dissera que "O mundo nos é dado de antemão, a nós despertos, que somos sempre de algum modo sujeitos com interesse prático…[o mundo] nos é dado como campo universal de toda praxis efetiva e possível, dado de antemão como horizonte". Ora, Krishnamurti trata a nossa realidade como não-realidade, como um obstáculo ao conhecimento, inclusive.

Não por outra razão, o tempo passa a ser um problema para Krishnamurti. Enquanto estivermos presos ao passado, presente ou futuro, teremos obstáculos ao conhecimento. Só podemos alcançar a verdade se a nossa mente se descolar da temporalidade. Diz ele: "Enquanto houver esta marca da memória, tem que existir a divisão do tempo em passado, presente e futuro. Enquanto a mente estiver acorrentada à ideia de que a acção deve ser dividida em passado, presente e futuro, há identificação através do tempo e por isso uma continuidade da qual resulta o medo da morte, o medo da perda do amor. Para compreender a realidade intemporal, a vida intemporal, a acção deve ser completa". E, adiante, é ainda mais claro quanto ao ponto: "Para mim, portanto, a coerência é um sinal de memória, memória esta que resulta da falta de verdadeira compreensão da experiência. E essa memória cria a ideia de tempo; cria a ideia de presente, passado e futuro, sobre os quais se baseiam as nossas ações. Consideramos o que éramos ontem, o que seremos amanhã. Tal ideia sobre o tempo existe enquanto mente e coração estiverem divididos. Enquanto a ação não nascer da plenitude, tem que haver divisão do tempo. O tempo é apenas uma ilusão, é apenas a incompletude da ação" (In: "A Arte de Escutar", Alpino, Itália - 4ª palestra 9 de julho, 1933).

Quanto mais leio J. Krishnamurti, mais me impressiona a vaguidade das suas afirmações, que entram num campo exotérico e caem em um profundo irracionalismo. A liberdade e a verdade, enfim, não seriam possíveis em nossa vida mundana, em que os fatos e o transcurso da nossa história se dão. Temos que fugir para uma realidade atemporal, libertos dos pensamentos, das crenças, do mundo da vida. A liberdade seria a negação do eu, de todas as circunstâncias vitais que me fazem ser quem sou.


Para onde nos levaria essa forma de pensar de J. Krishnamurti? Ele nos dá uma dica: devemos abrir mão de toda e qualquer segurança, inclusive daquelas advindas da prática de virtudes. Tudo isso seria obstáculos à liberdade: "Quando o homem estabelece uma segurança – a segurança da opinião pública ou da felicidade que ele obtém das posses ou da prática da virtude, que é uma fuga – ele enfrenta cada incidente da vida, cada uma das inumeráveis experiências da vida, com o pano de fundo dessa segurança: isto é, ele nunca enfrenta a vida como ela realmente é. Chega a ela com um preconceito, com um pano de fundo já desenvolvido pelo medo; aborda a vida com a mente totalmente revestida, sobrecarregada, de ideias" ("A Arte de Escutar", Oslo, Noruega - palestra no auditório da universidade 5 de setembro, 1933).

E só haveria um meio adequado para se chegar a essa libertação que leva à verdade: abrir mão do eu, negar-se. Nessa mesma palestra ele assevera: "Eu afirmo que existe essa realidade de vida eterna, mas não pode ser compreendida enquanto a mente e o coração estiverem sobrecarregados, estropiados pela ideia do “eu”. Enquanto essa auto-consciência, essa limitação, existir, não pode haver qualquer compreensão do todo, da totalidade da vida. Esse “eu” existe enquanto houverem falsos valores – falsos valores que herdamos ou que perseverantemente criamos na nossa busca de segurança, ou que estabelecemos como a nossa autoridade na busca de conforto".

Insisto nesse ponto: a doutrina de J. Krishnamurti advoga o mais absoluto irracionalismo, a negação do eu, a abdicação dos nossos valores e das conquistas da tradição. A cultura, as nossas descobertas científicas, as nossas crenças, tudo seria um obstáculo à verdade e à liberdade. O que nos restaria, então, diante disso? A resposta que ele nos oferta - perdoem-me a sinceridade - é simplesmente risível e tola: "essa dificuldade existirá enquanto as vossas mentes estiverem sobrecarregadas com esta consciência a que chamamos “eu”. Não posso dar-lhes valores correctos, se eu vo-los dissesse, fariam disso um sistema e imitá-lo-iam, estabelecendo desse modo apenas uma outra série de falsos valores. Mas podem descobrir por si próprios os valores correctos, quando se tornarem verdadeiramente indivíduos, quando cessarem de ser uma máquina. E só se podem libertar desta máquina mortífera dos falsos valores quando estiverem muito revoltados".

J. Krishnamurti prega simplesmente o nada, a fuga da realidade, negando o valor da história e da cultura, porém negando-se a colocar qualquer outra coisa em seu lugar. Ora, para mim isso não é muito pouco; é simplesmente o irracionalismo pintado de misticismo exótico.
 

Ora, somos embebidos na cultura; a expressão mais imediata do "tesouro comum da humanidade"(Gottlob Frege) é a linguagem. O ato de pensar é individual, mental, mas se realiza na linguagem; o pensamento, produto do ato de pensar, pode ser transmitido a outros e, não raro, pensamos os mesmos pensamentos pensados por outros.

Tudo o que construimos, tudo o que transformamos, é cultura. O fazer humano é sempre dentro de uma tradição, dentro de uma realidade simbólica intersubjetivamente vivida. A cultura produz e reproduz cultura. A reflexão pessoal, posta dentro de um contexto de diálogo, produz consensos e dissensos. A dialética da argumentação, a tese e antítese, as múltiplas formas da compreensão geram mais cultura.

Essa é a nossa riqueza. A busca do consenso é justamente isso: uma busca interminável! Se o agir comunicativo é livre, sincero, voltado ao consenso, podemos avançar na busca de pontos de encontro cada mais firmes, mas o consenso qual tal é uma quimera; o conflito em si mesmo não é um mal: é fonte de crianção intelectual e novas formas de pensamento.

A crença, seja ela religiosa ou filosófica ou de que natureza for, é algo ínsito à cultura humana. Ter pontos de vista, ter uma concepção de mundo, é próprio à condição humana. Por isso, soa desarrazoado quando se receita o fim das crenças para a obtenção da paz:

"A crença inevitavelmente separa.Quem tem uma crença, ou quando buscam segurança nessa crença, separa-se daqueles que buscam segurança em alguma outra forma de crença" (J. Krishnamurti)

Ora, aqui já se expressa uma crença: a de que a crença separa! Krishnamurti universaliza a sua crença, excluindo qualquer outra. E a sua crença é niilista: melhor não ter crença alguma! É dizer, o único meio de encontrar a liberdade e a paz seria deixar de pensar, deixar de se interrogar sobre nós e sobre o mundo, deixar de exercer a nossa capacidade especulativa. É uma lógica que nos diz o seguinte: sejamos amebas e encontraremos a paz!

Impressionou-me muito os vídeos que assisti de J. Krishnamurti. Um homem de fala pausada, que passa uma paz ao falar, demonstrando, em seu gestual, ter aquela visão de algo hermético, profundo, que nós não conseguimos apreender de imediato. Mas quando vamos decompondo racionalmente o seu discurso, quando vamos analisando as consequências lógicas da sua fala, sobra uma sensação de que restou muito pouco para ser aproveitado. E o pouco que restou é vago demais.

A filosofia ocidental avançou demais, mas esse misticismo hermético dos orientais seduz muito aos que estão com sede de sentido. Evocam sentimentos bons, difusos, de modo que aquela fala meio sem sentido parece contecer verdades profundas que fazem bem. É como aquela bebida enteógena conhecida como "ahyausca", chamada Santo Daime: provoca sensações boas... E só, ao final!


Vou terminar as minhas impressões sobre J. Krishnamurti, analisando o que ele compreende por "amor". Disse eu que essa era uma palavra plurívoca, que não podia ser usada como chave para tudo. Um guru dizer que a solução para a felicidade é o amor, ou que a verdade é o amor, ou que a liberdade é o amor, simplesmente põe as coisas no campo do óbvio e - tanto pior - do que não pode ser debatido. Ninguém discordará sobre a importância do amor, salvo se comecemos a nos entender sobre o que cada um entende por "amor". Aí o pau canta, não é mesmo?!

J. Krishnamurti tratou sobre o amor em seu livro "Liberte-se do passado", na décima parte. Como sempre, para abordar o tema ele nega o valor da cultura, das compreensões existentes. Para ele, afinal, a cultura é um mal: "Assim, para examinarmos a questão do amor - o que é o amor - devemos primeiramente libertar-nos das incrustações dos séculos, lançar fora todos os ideais e ideologias sobre o que ele deve ou não deve ser. Dividir qualquer coisa em o que deveria ser e o que é, é a maneira mais ilusória de enfrentar a vida". Em seguida, exclui o valor das concepções existentes: "Em primeiro lugar, rejeitarei tudo o que a Igreja, a sociedade, meus pais e amigos, todas as pessoas e todos os livros disseram a seu respeito, porque desejo descobrir por mim mesmo o que ele é".

Ele passa, em seguida, a dizer o que não seria o amor. Diz ele: "No estado de pertencer a outro, de ser psicologicamente nutrido por outro, de outro depender - em tudo isso existe sempre, necessariamente, a ansiedade, o medo, o ciúme, a culpa, e enquanto existe medo, não existe amor". Ou seja, rejeita ele como amor a entrega do homem a uma mulher, e vice-versa, em um relacionamento sadio e profundo de entrega e ajuda.

À falta de melhor conceito, e para forjar algo novo, vai para o exotérico ao dizer o que é o amor: "Não sabeis o que significa amar realmente alguém - amar sem ódio, sem ciúme, sem raiva, sem procurar interferir no que o outro faz ou pensa, sem condenar, sem comparar - não sabeis o que isso significa? Quando há amor, há comparação? Quando amais alguém de todo o coração, com toda a vossa mente, todo o vosso corpo, todo o vosso ser, existe comparação? Quando vos abandonais completamente a esse amor, não existe 'o outro'". Ora, pergunto eu: se não existe o outro, o ser amado foi absorvido pelo eu? Onde fica a polaridade do amor na relação eu-tu? O eu mata o tu, absorve-o?

Bem, aí nosso guru se sai com afirmações vazias, fátuas, que me impressionam pela falta de conteúdo. Assere ele: "Mas, se desejais continuar a descobrir, vereis que o medo não é amor, a dependência não é amor, o ciúme não é amor, a posse e o domínio não são amor, responsabilidade e dever não são amor, autocompaixão não é amor, a agonia de não ser amado não é amor, que o amor não é o oposto do ódio, como também a humildade não é o oposto da vaidade. Dessarte, se fordes capaz de eliminar tudo isso, não à força, porém lavando-o assim como a chuva fina lava a poeira de muitos dias depositada numa folha, então, talvez, encontrareis aquela flor peregrina que o homem sempre buscou sequiosamente."

Resta-me perguntar, quase em desespero: que coisa é o amor, afinal, para o senhor, meu caro guru? A resposta dele me deixou maravilhado: um engodo retórico de dizer o raso parecendo dizê-lo de modo profundo. Krishnamurti nos diz algo absolutamente vazio de sentido: "O amor é uma coisa nova, fresca, viva. Não tem ontem nem amanhã. Está além da confusão do pensamento. Só a mente inocente sabe o que é o amor, e a mente inocente pode viver no mundo não inocente. Só é possível encontrá-la, essa coisa maravilhosa que o homem sempre buscou sequiosamente por meio de sacrifícios, de adoração, das relações, do sexo, de toda espécie de prazer e de dor, só é possível encontrá-la quando o pensamento, alcançando a compreensão de si próprio, termina naturalmente. O amor não conhece oposto, não conhece conflito".

Fiquei chocado com essa definição de amor. Com todo o respeito, só faltou dizer: amor é porra nenhuma! Eu prefiro uma definição tão profunda quanto a que ele ofertou e que concebi agora: AMOR é o vazio do vazio do vazio, invertido e desdobrado no encralacrado da vida. Amar é pegar o avesso do sentimento e embuti-lo no reluzimento da alma até que a luz se faça presente no infinito do ser. Traduzindo: porra nenhuma!

Feitas essas reflexões, peço cuidado aos que se encantam com esses gurus. Os caras dizem muito de coisa nenhuma, mas de uma forma inteligente, exotérica e exótica, num misticismo sem compromisso com a lógica. É isso. E me perdoem os que gostam dessas construções.
 

Eu creio em ti, Senhor!

Eu creio em ti, Senhor!

Só me compreendo, com meus pecados, com meus erros, com a minha fragilidade, se meus olhos te alcançam pequeno e frágil na manjedoura. Despojado de tudo, até mesmo da dignidade de um local adequado para o teu nascimento.

Só me entendo na minha miséria através do teu amor. Meus medos, minhas angústias, minhas dúvidas apenas se dissipam se olho para a tua coragem diante de Pilatos, diante dos que te acusavam e te cuspiam.

Só me vejo grande, inteiro, feliz se se vejo a tua firmeza diante do mundo, o teu olhar doce e misericordioso, a tua infinita paciência em nos ensinar, acolher e mostrar o caminho.

Só consigo ser eu mesmo se te olho na cruz, sangrando, destruído, derrotado da forma mais amarga e abjeta. É na tua entrega por mim que me aceito e sinto que posso ir adiante sem medo da vida, porque tu, Meu Deus, venceste a morte.

Enfim, eu creio em ti! Creio que o teu amor é tão profundo que a ressurreição me abriu as portas para alcançar os teus braços e ser acolhido em minha vida pequena, insignificante e tola. Tu me fazes grande, tu me me fazes forte, tu, meu Senhor e meu Deus, és o "sim" que eu não pude dar, o gesto que quis mas não pude fazer, a coragem que tantas vezes me falta.

Eu creio em ti, Senhor! Tu és meu Deus!

segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

Paralelas

Linhas paralelas se tocam em algum ponto do tempo ou espaço? Na geometria euclidiana essa operação é impossível; destruiria o próprio conceito. Matematicamente, as paralelas vão ao infinito. Não há possibilidade do toque, da perda de rumo, como fossem linhas de trem, construídas exatamente para serem uma para a outra companheiras do desencontro.

Mas na geometria da vida as linhas, mesmo quando paralelas, terminam tendo um ponto de confluência: às vezes, o acaso; por vezes, um olhar; vezes bastas, uma palavra; outras tantas, um gesto qualquer. E o que era para ser um infinito desencontro transforma-se em uma inversão na lógica euclidiana: as linhas se tocam, se invadem nos espaços e no correr do adiante.

Almas que se encontram são como linhas paralelas que desafiam o destino, a história, o "script", a receita de bolo pronta e acabada. Desafiam, sim, porque negam-se a ler páginas escritas previamente, roteiros traçados por se-sabe-lá-quem, que com com régua e esquadro desenha o caminho ou, lápis à mão, bosqueja uma crônica antecipada do que devemos ser.

O amor é o elemento que destrói a geometria perfeita da vida predisposta e, em um giro sobre si mesmo, redesenha linhas em descompasso e reconstrói novas realidades. É ele essa revolução que esmiuça e desqualifica todos os postulados, rompendo os vincos precisos dos paradigmas, mostrando que a nossa racionalidade simplesmente se rende àquilo que está além mesmo da própria linguagem, do plano da expressão: amar é dizer - de si mesmo e do outro - sem a posse das palavras e para além dos próprios pensamentos! É sentir o sentimento; é assumir o outro antes mesmo do cogito, do "eu penso".

O amor invade a cidadela da razão. Toma-lhe as terras, derruba as fronteiras, se apodera dos seus despojos e faz escravo, como diria o poeta, o vencedor! Amar é ganhar para perder-se, consoante Camões proclamara ainda nos tempos das caravelas. E não sem razão. Não sem olhar para o Sr. El Rey, o amor, e lançar, sem medidas, as velas ao mar da vida.

Há revolução no amor. Quem não sentiu a vida mudar ao ser tomado por ele, quem não sentiu o coração espicaçado em mil pedaços, quem não sentiu a perda do senhorio sobre os próprios sentimentos, não viveu a experiência do amor. Pode ter gostado, pode ter nutrido um sentimento bom por alguém, pode até ter se enamorado, mas não viveu a experiência daquilo que os poetas proclamaram desde sempre, quando o homem começou a se entender e brincar com as palavras. E se você - sim, você que me lê! - não viveu nada disso, a vida lhe roubou a maior das experiências, deixando-o longe do abismo, é certo, mas sem a emoção que ele proporciona.

Porém, que viveu essa densa tempestade, não adianta fugir dela. Ele, o amor, não abandona quem o descobriu comendo-lhe as entranhas da alma. A fuga é o salto no vazio da autonegação. Se o amor não é correspondido com a mesma intensidade e força, o único modo de sobreviver a ele não é negá-lo, é simplesmente deixá-lo vivente, lá em quarto escuro do coração, privado de água e pão, até que, moribundo, não tenha forças para ferir a alma, embora subsista vivo, ali onde não pode gritar para ser ouvido. Mas, nesse caso, nunca deixe que os olhos vejam a pessoa amada: a masmorra em que o amor foi aprisionado poderá não existir à experiência e viver dias de Bastilha.

O amor, finalmente, é a mais bruta força da natureza. Morre-se por amor, agiganta-se por amor, faz-se guerras por amor. Reinos caíram em razão dele, reis abdicaram, plebeus viraram príncipes, obras de arte foram compostas, monumentos erguidos. Em seu nome, a história da humanidade foi escrita e reescrita. Tudo pelo amor humano, amor de homem e mulher. Por ele, as paralelas se curvam e se perdem no enlace do infinito!

domingo, 11 de dezembro de 2011

Sonhos e realidade: "sim, eu posso!".

Somos muitas vezes limitados em nossos sonhos. Muitos dizem para nós: "vocë não pode!", "isso é impossível!", "você não consegue!". E isso, mais da vez, é dito por pessoas que amamos, que têm receio e apenas passam para nós os seus próprios limites, os seus próprios medos diante da vida.

São como a mãe de Marisa Ventura (J.Lo) no filme "Encontro de Amor". Diante do primeiro problema, diante de sonhos que parecem difíceis, não apenas a negativa do incentivo, mas a realidade crua jogada na cara, como uma âncora a impedir que se navegue para águas mais profundas:

- "Quer continuar a ter sonhos que nunca vão se realizar ou botar comida na mesa?", pergunta ela à filha mostrando-lhe contas a serem pagas.

Diante de uma pergunta assim, qual a resposta possível? Deixar que o medo tome conta, deixar os sonhos de lado para simplesmente "lavar o chão", como seria o destino de Marisa?

E ela dá a resposta possível, corajosa, definitiva:

- "Eu vou pegar essa chance sem medo nenhum, sem a sua voz na cabeça dizendo que eu não posso!".

Sim, como é imperativo, em nossas vidas, dar os saltos necessários, com os riscos todos, para que possamos transformar aqueles sonhos em uma nova realidade. Nem sempre é fácil, nem sempre dá certo, mas ao menos podemos olhar para a vida e dizer: "eu tentei!; eu lutei".

Afinal, vencer é apenas uma possibilidade; lutar, porém, é sempre a única saída digna e definitiva.

Aí podemos ver, quem sabe!?, as pessoas que antes toldavam os nossos sonhos, dizerem como a mãe de Marisa, ao final do filme, muito orgulhosa:

- "Aquela é a minha filha!", apontando para a televisão.



A frase do filme, dita pelo Mordomo do Hotel:

"O que fazemos, não define o que somos. O que nos define é o quão rápido nos levantamos depois de cair."
Maid in Manhattan - Um encontro de amor.



(Uma breve reflexão sobre o filme água com açúcar "Encontro de Amor", 2002).

quinta-feira, 8 de dezembro de 2011

Escolhas


Lá estava a vida com as suas escolhas. Cá estamos nós, com as nossas possibilidades. E entre um e outro, entre a vida e quem somos, há os passos a serem dados, as opções a serem assumidas, o destino a nos bater a porta. Todos nós, indefectivelmente, vivemos isso. Todos nós, indefectivelmente, caminhamos em um universo de escolhas e possibilidades.

O que é a felicidade? O encontro certeiro com a nossa vocação, o transformar as possibilidades em realidade, o fazer as nossas escolhas segundo o nosso coração. A felicidade é um estado de refazer-se constante! É o resultado dos passos dados, dos caminhos percorridos, do suor despendido na lida sem fim.

Não pode ser feliz quem se trai; não pode ser feliz quem se nega a si mesmo no processo da vida. Porque faz de si uma farsante, um reflexo falso dos seus próprios sentimentos e sonhos.

Eu simplesmente admiro - sim, admiração! - quem se permite questionar. Quem põe em xeque as suas certezas e se deixa indagar sobre os seus próprios fundamentos. Perguntar-se é em si mesmo uma atitude corajosa. Quem sou?, que é para mim a vida?, como Deus se apresenta para mim?, quais as tradições que quero ou não seguir por razões tais ou quais?, quais caminhos devo percorrer?... O exercício sincero das perguntas que buscam respostas é a mais profunda experiência de si mesmo. Revela a grandeza maiúscula de quem se põe diante da vida com um vivente autêntico.

E o perguntar-se sinceramente permite sonhar quem tem a coragem linda, encantadora, de se refazer todos os dias à procura de si mesmo. Só quem se busca cresce; só que se olha a si mesmo com verdade se agiganta diante das escolhas e possibilidades. Só quem, afinal, tem a profundidade para se perguntar "quem sou nesse mundo que me cerca?" pode estar sempre à procura das constantes respostas que nos fazem crescer, buscar, amar, sonhar e... dar os passos para a construção de quem somos de fato.

Amor líquido

Três coisas que dilaceram o amor maduro: o ciúme sem medida, a desconfiança injustificada e as atitudes intempestivas.

O amor de hoje é líquido, para usar a expressão de Zygmunt Bauman, porque amar é cuidar. O bom jardineiro cuida do seu jardim, conhece as vicissitudes das suas plantas. Para isso, deixa-se estar com elas. Esse "perder tempo" é fundamental no amor, também. Amar é enamorar-se. É ganhar tempo ao perder-se nele, criando raízes, olhando nos olhos, invadindo todas as reentrâncias da alma... e não apenas dela!

"É um cuidar que se ganha em se perder", já dizia Camões, com a sua pena precisa de poeta. O perder-se em momentos de conversas, de cumplicidade, de uma dança doce de mundos que se querem amalgamados numa história construída passo a passo.

Quem não sabe perder tempo com quem se ama não sabe amar. Quem se perde em ciúme tolo, em desconfiança excessiva ou em atitudes intempestivas, perde justamente uma das coisas mais doces do amor: a cumplicidade.



O amor nem sempre é investimento; é perda para um ganho humano, Perda do orgulho, perda dos medos, perda do EU para iniciar o NÓS que não se funde e se complementa, perda do tempo dos negócios em favor do tempo de um telefonema de carinho... Perder nem sempre é subtração, afinal!

O bom amor líquido é líquido pelo que se provoca na mulher amada; e nada mais!

Ter medo


Ter MEDO do amanhã é uma necessidade de sobrevivência. Quem não tem medo não tem como saber valorar o que vale a pena nos levar aos riscos. O medo são os nossos sentidos avisando que há razões para cautela, para que o passo dado seja melhor medido e pesado. Mas o medo não pode nos paralisar, não pode ser a desculpa para abrir mão do que acreditamos e do que realmente somos.


Não é ruim ter medo. Mas é terrível ser dominado por ele, permitir que ele dê a última palavra, abrindo mão dos sonhos, das razões que nos fazem sorrir, gozar a vida, dar passos firmes rumo ao desconhecido horizonte que de quando em quando se nos apresenta. Por vezes, horizontes que se nos apresentam uma única vez na vida...

"Não tenha medo!", "Non abbiate paura!". João Paulo II nos disse as palavras de Jesus para que sempre nos lembremos que o medo faz parte da vida e da história humana, mas que a coragem é a nossa verdadeira vocação para a felicidade.

A aventura de viver


Viver é sempre uma impressionante aventura. Cada dia aprendo mais isso. Cada dia acho que vale mais a pena as lutas diárias, as defesas das convicções, as buscas constantes… Cada dia acredito mais que, aconteça o que acontecer, é preciso sonhar, ter caminhos a seguir, ter a força para pegar a vida com as unhas, sem medo do amanhã que, poxa!, ninguém sabe como será. Podemos construi-lo, é certo, mas sempre a partir do HOJE. O HOJE é o passo dado, é a decisão tomada, é o querer feito ação…


Quem se prende demais ao amanhã, logo se vê!, não dá conta que o amanhã será sempre o amanhã, que não há pontes outras para ele, senão o indefectível HOJE gritando, pulsando, mostrando que a vida é dom de Deus. Quem olha demais para o horizonte esquece o caminho que leva a ele…



Às vezes o caminho é pedregoso, às vezes tem espinhos e armadilhas, às vezes esfola os pés e dá medo… Mas está ali, nos desafiando, porque depois dele há já o que nos espera e buscamos… Não se constrói nada sem luta, sem riscos, sem medos… E é por isso que o resultado de tudo isso se chama “conquista”!

Medo e coragem


Quem não tem medo não sabe o que é ter coragem. O medo é justamente a autopreservação gritando. Mas a coragem é a ponte que o ultrapassa. O medo de sofrer o já sofrido, de viver o já vivido, é a renúncia da vida mesma, porque não há vida sem chagas, sem marcas fortes vincando a alma e dizendo para ela mesma: “Vivi!”. Sim, viver é amadurecer, envelhecer, ter experiências boas e más, criando um couro curtido para novas batalhas…
Os desafios existem porque há algo para além de nós que nos chama. Algo que vale a pena. É isso que nos move como pessoas e nos faz crescer. E há sempre o medo de falhar, de não conseguir, de estar aquém da vitória! Mas se não houver o medo da derrota, como alguém pode se preparar para a vitória, afinal? É o medo de perder na dosagem certa que nos faz estar prontos para vencer…
Não podemos ter as respostas para tudo. Não podemos ter a vida como uma receita de bolo. Não podemos imaginar que tudo de antemão dará certo. Mas podemos ao menos nos compromissar em que tudo dê certo, fazendo a nossa parte e vivendo intensamente a convicção de que, sim!, é possível!

Cheiro e essência


A mulher amada tem um cheiro próprio, único, que invade não apenas as narinas, mas se apodera dos sentidos todos, com a delicadeza de um vulcão em chamas. E faz maciço os sentimentos, como se ganhassem uma vida própria, autônoma.


A pele, os poros, cada pedaço do corpo da mulher amada exala o seu perfume, que não existe em perfumaria outra alguma, que alquimista algum teria capacidade de isolar. É cheiro da natureza, cru, que se adelgaça com o suor da dança apaixonada, com os movimentos imperativos que se impõem e ganham vida própria.



O cheiro da mulher amada é único! Não se sente apenas; se bebe, se consome, se mastiga! Ele tem uma densidade própria, que desafia todos os sentidos, mostrando que somos tão complexos que só há unidade ali, onde os sentidos se perdem e se deixam perder…



Ah, esse, aliás, um dos mais poderosos sinetes do amor: o cheiro da mulher amada! O querer tanto sentir que dói, porque alimenta a alma, faz explosivo o coração e mostra, afinal, que quando amamos queremos levar em nós a essência do outro… Afinal, a essência é o cheiro!

Amar, amar somente, é um beco sem saída


Amar, amar somente, é um beco sem saída, já dizia Pe. João Mohana. Amar pede mais; pede entrega, abertura, cumplicidade, cuidado com quem se ama, respeito. Pede que o outro seja parte da vida, seja íntimo por necessidade. Amar não cria fronteiras, abarca; não cria muros, aproxima; não cria barreiras, acaricia. Amar pede o outro para si, de um modo tal que o outro continue outro, mas se faça o mais próximo, o mais querido, o mais necessário.

Enquanto não sentir isso por alguém, não saberá o que é o amor de verdade. Há de existir um momento, quando os olhares se tocam pela vez primeira, em que haja um tanto de perda de foco, de eclipse da razão. O amor que rnunca soube o que é rasgar o peito, vassalar a alma, fazer sonhar, não pode ser digno desse nome. O amor que nunca fez tremer corpo e alma, que nunca tomou minutos ou horas de pensamentos vastos e suspiros fundos, que não tomou de si o apetite e as razões mais miúdas para agir, haverá de ser tudo, menos amor.

O amor acalma com o tempo, mas não perde aquela fagulha inicial, não deixa que os olhos se acostumem com a nudez da mulher amada. Há ali sempre um desejo que floresce, um olhar que se renova, um querer que exaspera. Acalmar, porém, não é adormecer nem estiolar-se; é simplesmente passar dos raios e trovões à primavera.

O amor, enfim, tem tempero variado em uma mesa farta. Vai da iguaria mais apimentada à sobremas mais suave…

Sim, aqui e ali pode haver algo fora do tom, porque o amor não quer a perfeição; o fundamental para ele é a possibilidade constante do diálogo que se quer constante, das pontes que não se fecham, da necessidade do eterno recomeço. O amor perfeito é o que se enamora da imperfeição: as rugas virão, a pele perderá aos poucos o viço, mas ele, o amor, vai se renovando como criança que apenas quer brincar, seja com que brinquedo for… Para a criança não importa a perfeição do brinquedo, mas a qualidade da diversão. Assim é para o amor!

Amar, amar somente, é um beco sem saída, simplesmente porque amar pede atos, gestos, sinais. Amar, enfim, nos tira de nós para olharmos a vida sem esquecer do ponto de vista de quem se ama. É a porfia lúdica e impensável entre o EU e o TU, que não se dissolve no NÓS, mas num EU-TU rico e profundo. Somos, no amor, dois que se buscam sem se dissolver na unidade, na identidade, na perda da referência de si mesmo. Na polaridade e tensão de duas vidas que se querem, que cedem aqui e ali para que se permitam ser e estar, consiste o amor.