domingo, 21 de março de 2010

Incidência, fato jurídico e teorias pré-hermenêuticas

Vi hoje, aqui em Salvador, a justa homenagem a Marcos Bernardes de Mello organizada por Fredie Didier Jr. e Marcos Ehrhardt Jr., publicada pela editora Saraiva sob o título Revisitando a teoria do fato jurídico. Marcos Mello foi meu professor de Teoria Geral do Direito, sendo responsável por formar gerações a partir da obra de Pontes de Miranda. A ele, devo o gosto pelo estudo do pensamento pontensiano, que sempre esteve presente no eixo da minha formação jurídica.

Tive oportunidade de ler com especial interesse dois dos textos que compõem obra: um, escrito por Adrualdo de Lima Catão; outro, por Andreas J. Krell. Em texto interessante, Catão escreveu sobre Uma visão pragmática da noção de fato no direito: o caráter interpretativo do fato jurídico; Krell, doutra banda, tratou com competência sobre A relevância da teoria do fato jurídico no âmbito do moderno direito constitucional e administrativo. Ambos fazem observações relevantes sobre a teoria do fato jurídico através de uma visão pragmática e hermenêutica, respectivamente.

Catão, por outras vias teóricas, aproxima-se da corrente defendida por Paulo de Barros Carvalho segundo a qual "fato" não seria o evento ocorrido no mundo (penso "mundo" aqui no sentido usado por Husserl), mas "nada mais do que descrições feitas por observadores, as quais refletem, desde já, seus interesses e necessidades" (p.2). Daí porque "fato" é sempre algo de subjetivo, sendo "impossível se falar em conhecimento objetivo dos fatos" (idem, ibidem). Para ele, inclusive, seria imprópria a distinção entre mundo dos fatos e mundo jurídico, porque os fatos já seriam sempre produto de uma valoração. Catão afirma: "O problema é quando a postura formalista se transforma numa visão pragmática sobre o fato, deixando de levar em consideração o aspecto interpretativo do fato jurídico. O problema é quando se passa a pensar num `fato puro`, pré-linguístico, fora do jogo de linguagem. É esta noção que dá ensejo à distinção factual-normativo, como se existisse um fato natural, puro; e um fato valorado, que já seria o fato jurídico". E adiante assevera: "O que tradicionalmente se pensa é que o fato puro é independente do homem e não é passível de interpretação. Tampouco o fato jurídico é passível de interpretação, pois seria apenas a ocorrência lógica decorrente do conhecimento humano do fato puro correspondente ao suporte fático abstrato"(p.19).

A tese de que a incidência da norma reclama o conhecimento do fato por alguém não é de Pontes de Miranda; é uma afirmação de Marcos Bernardes de Mello, que confundiu - seja-me permitido afirmá-lo - o mundo do pensamento com o plano da psique, pondo equivocadamente o fenômeno da incidência da norma jurídica na mente de um sujeito psicologizado. Na verdade, o plano da incidência é justamente o mundo intersubjetivo da cultura, das vivências intencionais, a que Karl Popper denominou de mundo 3, o mundo dos pensamentos objetivos.

Como mostrei no meu livro Teoria da incidência da norma jurídica, o evento morte ingressa no direito apenas quando conhecida, porque assim é previsto no ordenamento jurídico; a morte não conhecida é, juridicamente, ausência, com os efeitos jurídicos daí decorrentes.

Interessante observar que Krell considere pré-hermenêutica a teoria da incidência da norma jurídica justamente porque toda aplicação pressupõe uma prévia interpretação, sem levar em conta que a incidência é um fenômeno contrafáctico, como as condições de possibilidade para o entendimento no plano do discurso de cariz habermasiano. A interpretação, talvez esse seja o ponto a merecer uma maior reflexão, não pode ser visto como uma atividade meramente subjetiva, como pensam Catão e Krell, aquele de modo mais forte que este, mas, sim, uma atividade que se dá dentro de um diálogo pressuposto, em que o seu resultado apenas se legitima com a sua vivência intersubjetiva e social.

Escreverei novamente sobre esses temas em um artigo teórico em que procurarei demonstrar que a teoria da incidência que proponho, que é um aggiornamento do pensamento pontesiano, dista muito de ser pré-hermenêutica, nada obstante não se deixe encantar ou levar às últimas consequências o ceticismo antimetafísico do último Heidegger. É disso, ao fim e ao cabo, que se trata: há os que veem a interpretação como um ato meramente subjetivo, entregue à ditadura do sujeito, o que, em última análise, torna impossível o próprio conhecimento. Aliás, não é à-toa que Catão fundamente o seu pensamento no pragmatismo de Rorty e de H. Putnam.

Termino aqui dizendo do meu carinho intelectual aos dois estudiosos alagoanos aqui citados (Krell deixou de ser alemão há muito; é alagoano da gema). Catão é um estudioso jovem e sério, a quem acompanho através do seu blog (e ele acompanha este blog); Krell prefaciou a 2a edição do meu Teoria da incidência da norma jurídica, o que por si só mostra o quanto o prezo. E, por isso mesmo, escreverei sobre o tema com vagar, para entabularmos um salutar diálogo. Vamos em frente.

6 comentários:

  1. Belo texto, Adriano, esperamos o "artigo teórico" sobre o tema tratado. Interessante a questão da MORTE. No mundo fático ela é REAL porque ocorreu, porém, no mundo jurídico ela inexiste, chamada que é de, AUSÊNCIA, enquanto não re-conhecida pelo Direito. Provocação: sem "linguagem competente" a morte é um mero "evento" e não um fato real? Abção, amigo!

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  2. Árvore é toda a planta com tronco grande e raízes que dá frutos. É uma definição. Se existir uma planta com tronco grande e raízes sem dar frutos estarei diante de quê? Poderemos convencionar que não se trata de uma árvore, mas de uma "wasauchea", nome que poderemos convencionar para este tipo de planta. Ou seja, algo de acidental ao ser árvore foi elevado à condição de essencial e, por isso, expurgamos do ser árvore o não dar frutos. A linguagem competente, como linguagem escrita e documental, é basicamente isso para caracterizar o fato jurídico: a transformação do acidental em essencial; do contigente em necessário.

    A morte não conhecida é morte. No mundo dos fatos, é assim que se dá. Mas as normas jurídicas necessitam ter operacionalidade deôntica: não opera num mundo abstrato. Assim, deixa de tomar em consideração o fato que não se conhece e toma o que se vive: a ausência prolongada de uma pessoa. O fato que entra no mundo jurídico é a ausência, não a morte. O fato bruto é um só (a morte desconhecida é a ausência conhecida), mas o direito o valora da forma que melhor seja útil à vida e ao comércio jurídico.

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  3. Ainda não estou totalmente preparado para entrar nessa mesa repleta de mestres e doutores em Ciência Jurídica, mas arrisco um comentário, me desculpando pelo fato de fazê-lo sem me identificar.

    Pontes de Miranda afirma que “À incidência da regra jurídica tem-se chamado respeitabilidade. A palavra concorreu para muitos enganos, sendo o maior deles o de se procurar a causa desse respeito efetivo à regra jurídica: ora no íntimo dos indivíduos, deslocando-se para o terreno psicológico o problema de física social; ora fora dele, no poder exterior de coerção, o que esvaziaria de elemento psíquico o fato social e reduziria a respeitabilidade à coerção eficiente.” E completa: “a incidência é no mundo social, mundo feito de pensamentos e outros fatos psiquicos, porém nada tem com o que se passa dentro de cada um, no tocante à adesão à regra jurídica, nem se identifica com a eventual intervenção da coerção estatal.” (Tratado de Direito Privado, § 4º, 1)

    Nesse trecho parece ficar claro que a interpretação da norma jurídica pelo sujeito quando do ato da aplicação não deve ser aferida pela aproximação dela a ele somente, como se ambos fossem objetos estanques de um dado científico. Hoje, sendo a linguagem imprescidível ao método interpretativo das normas jurídicas, essas, como aquela, reclamam uma interpretação tridimensional (eu, a norma e eles) para lhes outorgar validade cultural.

    Quando se admite que a incidência somente ocorre com o conhecimento do fato, conforme a lição do Prof. Marcos Mello, retira-se da contexto a física social, expurgado uma enorme gama de relações sociais em que a psique é elemento contingente.
    O exemplo da morte parece convincente, principalmente pelo fato de esse fato jurídico exigir um registro público como condição de eficácia erga omnes. No entanto, quando se traz essa tese para fundamentar a incidência de fatos que não necessitam de registro, poder-se-ia fazer a pergunta: seria necessário o conhecimento de quantas pessoas para que o fato fosse conhecido e assim incidisse a norma? Uma basta? Para min restou a dúvida.

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  4. Adriano, você está nos melhores dias, inspiradíssimo irmão!
    Perfeito!Afetuosamente.

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  5. Amigo,
    Desde já, agradeço demais os elogios. Sua leitura e seu comentário são muito importantes para mim.
    Esse texto, apesar de publicado somente agora, refere-se a pesquisas que fiz na época do meu mestrado.
    Interessei-me tanto pelo problema da verdade e da teoria do fato jurídico que enfrentei exclusivamente esse tema no meu doutorado.
    Nele, faço grandes ressalvas ao que disse nesse artigo e em outros escritos meus da época. Nesse sentido, caminhei em direção à teoria do fato jurídico, sustentando que ela não tem pretenção de ser uma teoria da interpretação e que a noção de incidência é um pressuposto lógico.
    Assim, abandonei expressões que poderiam levar ao relativismo e defendi que a pragmática de Wittgenstein não é incompatível com uma noção de verdade no Direito. Juntei Pontes com Wittgenstein... Defendi que a TFJ pode ser entendida como Lógica Jurídica e, portanto, está num campo "prévio" com relação aos problemas pragmáticos que envolvem a interpretação. Sendo assim, deixei de lado a crítica que fiz nesse artigo e enfatizei que a complexidade da interpretação não pode levar ao abandono da noção de incidência infalível. Foi um retorno conservador à tese de que a verdade como correspondência não é incompatível com uma visão pragmática.
    Estou trabalhando pela publicação em livro e, assim que tudo estiver pronto, envio ao amigo.
    Sua obra foi devidamente citada na minha tese.
    Abraços!

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  6. Catão, aquele texto está muito bem escrito, o que me levou a refletir sobre ele e iniciar um diálogo. Ontem mesmo voltei a ler a obra de Putnam, sobretudo a distinção entre fato e valor. Rorty, por outro lado, filosofa querendo destruir a filosofia mesma. Habermas, em seu "Verdade e Justificação", brinda-nos com uma importante análise do pensamento de Rorty e, lateralmente, de Putnam, mostrando que a concepção de verdade de Putnam exclui os fatos "lá fora" da preocupação do conhecimento. No direito, podemos ver esse fenômeno da tara pela linguagem na separação radical entre ser e dever ser, como instâncias que nunca se tocam. Escrevi sobre isso, com esteio em Lourival Vilanova, no meu TING. O dever ser quer ser, quer imiscuir-se na vida, que deixar de ser linguagem para ser fato e vida.

    Obrigado, Catão, por sua participação aqui. E será uma honra ler o seu livro.

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