terça-feira, 10 de abril de 2012

Pedalar, pedalar, pedalar...



É preciso saber viver, como é preciso saber pelo que morrer. Sim, saber por que se vive e saber até para que se morre. Há um "por que" e um "para que".

Por que vivemos é uma questão que, no mais da vez, fica escondida nas franjas do nosso cotidiano, esfarelando-se ao passar dos dias, depois dos anos, sem que venhamos a nos dar conta, navegando como nau sem rumo. A correnteza leva um dia; noutro, o vento. E vamos indo no desfiar das horas, perdidos de nós mesmos, fugindo dos nossos pensamentos, esgueirando-se enquanto não surja um evento capital que nos faça perguntar, assim, simplesmente: "minha vida tem sentido?".

Viver não é andar de bicicleta! Não basta ficar pedalando, morro acima, ladeira abaixo, desviando-se aqui e ali de pedregulhos do caminho.

Pedala, pedala, pedala... O tempo passa, o tempo corre ligeiro, nós fazemos repetidamente aquele gesto. Pedala, pedala, pedala... Para onde, meu caro? "Não dá para responder, tenho que pedalar....".

Nossos labirintos são caminhos mais vistosos do que qualquer outro que nossos olhos possam enamorar. Nem o sol se pondo, tingindo o céu de vermelho enquanto ainda não se deixou cobrir do negro da madrugada, pode ser um quadro mais excitante do que as esquinas da nossa alma.

Mas os nossos labirintos simplesmente são cheios de interrogações, de questões profundas, de imensos "canyons"... Parar para pensar significa ter de parar de pedalar, fazer uma pausa, olhar para si mesmo e para o seu entorno, buscar o significado das coisas e da nossa própria existência. E o que nos faz humanos não é justamente essa divina capacidade de por significado nas coisas?, de dar nome a elas?, de refletir sobre as reflexões dos outros que vieram antes de nós ou que são nossos contemporâneos?

Pedalar, pedalar, pedalar... Porque parar um pouco pode nos revelar que estamos pedalando para um destino que não é o nosso, por um caminho que nos levará para longe de quem somos, de quem amamos, dos sonhos que acalentamos.

Sim, é preciso aprender a parar um pouco e gritar, à boca cheia, uns tantos impropérios, umas tantas sandices, um FODA-SE! absolutamente desbragado, altissonante, para depois ciciar para a própria alma, acalmar o corpo, deixar-se estar, olhar a vida com olhos desarmados, como quem se deleita diante de uma escultura de um Gian Lorenzo BERNINI ou de um nu feminino, de fartas carnes, de um Jean-Pierre RENOIR. Sim, humano que somos, também, e não menos importante - por certo bem mais até! - dar-se ao prazer de uma oração, um Pai-Nosso e uma Ave-Maria, uma prece de conforto e, ainda mais humanos, um pedido por saúde, paz e alguma sorte... porque ninguém é de ferro.

Vivemos para ser felizes!

Não vivemos para pedalar!

Vivemos sem um mapa, mas com a busca constante da felicidade, da plenitude, da inteireza do nosso ser.

Dinheiro, poder, prestígio, sucesso, respeito, tudo isso é bom e legítimo. Não podem ser demonizados. Todos buscamos um lugar ao sol, o reconhecimento do nosso talento ou do nosso trabalho, a possibilidade de ter recursos para um passeio, um carro, uma vida decente ou, no mínimo, uma vida digna. E lutamos todos os dias para construir nosso campo de pouso no mundo. Mas se só lutamos por isso, estamos apenas pedalando, pedalando, pedalando... E por mais que tenhamos, e por mais que acumulemos, por mais que possamos, não haverá nem tampouco trará felicidade.

Sim, haverá momentos de alegria; sim, haverá um átimo de realização. Mas aí, após a conquista, o que nos resta? Mais buscas, mais necessidades, mais correria, de modo que a bicicleta continue em um movimento constante, nem sempre linear, pedalando, pedalando, pedalando...

E aí vem a segunda questão: "para quê"? Se vivo porque vivo, para que eu morro? A pergunta parece desarrazoada, pois se nem sei por que vivo, para que buscarei entender a razão da morte?

Poucos, na filosofia contemporânea, foram tão marcados por essa questão como Heidegger. Para ele, o homem possui como característica existenciária o "Dasein" (ser-aí), ou seja, o ser-no-mundo, o estar em situação. Como ser-no-mundo, a essência do homem seria a sua "existência", que é essa característica do homem ser fora de si e para si mesmo, com as suas potencialidades, os seus planos, os ideiais que lhe fazem agir. E o homem existe como ser-no-mundo na temporalidade. A existência do homem se dá no tempo; o seu ser é sempre e já o ser-aí.

Como diz Aline Mayte Terhorst ("O Existencialista Martin Heidegger"), forte nas lições de Ernildo Stein:


"O homem é um existente porque está essencialmente ligado ao tempo. Isso faz com que ele se encontre sempre além de si mesmo, nas possibilidades futuras. Neste sentido o homem é futuro. Mas para pôr em ato essa possibilidade, ele parte sempre de uma situação, na qual ele já se encontra, neste sentido ele é passado. Finalmente, enquanto ele faz uso das coisas que o cercam, ele é presente". E conclui ela, adiante: "Com a morte o homem conquista a totalidade de sua vida. Enquanto ela chega ela não chega, falta a ele alguma coisa que ainda não pode ser e que será. O homem adquire consciência da sua submissão à morte através da angústia, outra disposição fundamental do ser. 
Heidegger chama a morte de 'principio de individuação', o princípio formal da vida humana: a vida humana se torna um todo somente mediante a morte, que a limita. Só a morte permite ao homem ser completo".


A temporalidade é o eixo da vida; a morte, a sua totalidade. Ela é o ponto de chegada, a completude da existência, onde já não há mais futuro.

Para quem não tem fé, para quem não acredita que tenhamos uma vida após a morte, para quem joga tudo no viver sem "porquês", sem "paraquês", a morte é uma questão sem-sentido. Não raro, porém, é justamente a escapadela que muitos, já fartos de tanto poder, dinheiro, fausto, buscam, porque viver já não tem mais sentido; estão empanturrados de tudo.

Vou concluir, agora.

Viver é um dom. A busca da realização é a vocação humana. A felicidade é uma aspiração legítima. Só quem tem a coragem de ir contra a corrente, contra os ventos, pode navegar para o seu destino, ainda que seja mais custoso, ainda que exija muito mais esforço. Viver, porém, ocorre na temporalidade. Não temos, como na música do Legião Urbana, "todo o tempo do mundo" (música "Tempo Perdido"), tampouco seremos para sempre "tão jovens!".

Se viver é um dom, morrer é o nosso destino!

Viver é preciso; pedalar é uma necessidade circunstancial. O que nos faz maiores e melhores é o tempo que, qualitativamente, podemos parar para apreciar o caminho, sabendo para onde vamos e por que vamos. Sem pressa de chegar, sem ansiedades desmedidas, mas com a convicção que brota da alma, com a força que vem de um coração que se permitiu amadurecer.

O sentido da vida, meus caros, passa necessariamente pela verdade que buscamos. E só podemos ser felizes, realmente felizes, se lutarmos pela nossa realização pessoal, a descoberta diária de quem somos, ainda que tenhamos, em seguida, que continuar a pedalar, pedalar, pedalar...

Tenhamos um tempo para nós e lutemos, sem tréguas, pelo que realmente vale a pena, pelo que nos trará realização, pelo que amamos e, sobretudo, pela nossa alma.

Um comentário:

  1. Boas reflexões no texto, parabéns.

    Você diz que viver é um dom, fala isso no sentido de 'aptidão'? Caso sim, dizem que cada pessoa tem um "dom", e que o "dom" não se conquista nem se adquire, já se nasce com ele.

    Então, você pensa que viver é uma aptidão que nem todos podem possuir?

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