segunda-feira, 21 de dezembro de 2009

Estado e fé: Habermas e D'Arcais

 HÁ um debate interessante - que eu gostaria muito de resenhar aqui (e o farei, se tiver tempo) - entre o alemão Jürgen Habermas, o maior filósofo do último quartel do século XX, e o italiano Paolo Flores D'Arcais, que no Brasil teve recentemente publicado em livro ("Deus existe?", editora Planeta) o seu diálogo público com o então Cardeal Joseph Ratinzeger (Papa Bento XVI).

Habermas e Flores D'Arcais debateram sobre um tema muito importante atualmente no ocidente, justamente quando assomam em relevo questões bioéticas (como as pesquisas com células troncos, o aborto, etc.), morais (casamento entre homossexuais, adoção de crianças por casal gay, etc.), em que há uma sensível intersecção entre fé e razão, religião e Estado. O filósofo alemão sustenta a existência de duas esferas autônomas de discurso nas sociedades complexas democráticas: a esfera institucional, formada pelos órgãos do Estado chamados a procedimentalmente se pronunciarem e decidirem sobre esses temas de interesse coletivo (parlamento, judiciário, etc.), e a esfera pública, formada pela sociedade civil organizada, pelo debate entre iguais no convívio social e partilhado, é dizer, onde cidadãos podem participar informalmente do debate, como internet, televisão, jornais, manifestações em igrejas e templos.

Para Habermas, na esfera institucional não se admitiria a imissão de discursos religiosos na formação dos argumentos que sustentem uma afirmação, porque sendo laico o Estado, não poderia a religião interferir no processo decisório. Deste modo, não se poderia no processo de uma tomada de decisão do parlamento, de órgãos administrativos ou de tribunais, surgir na articulação de argumentos nenhuma menção a teses de natureza religiosa, como, por exemplo, criticar o aborto com a alegação de que o feto ou embrião seria, à luz da fé, imagem de Deus, tendo pois já a infusão da alma desde a concepção.

Flores D'Arcais resume o pensamento de Habermas da seguinte maneira (aqui):
"...nell’intero orizzonte istituzionale «cittadini [religiosi] e organizzazioni [religiose] devono sapere che il contenuto cognitivo dei loro contributi può giustificare decisioni politicamente vincolanti solo a patto di venire preventivamente tradotto», cioè rigorosamente privato di riferimenti alla fede e a Dio. Insomma, nel processo deliberativo della legge e in quello della sua applicazione l’argomento-Dio deve essere ostracizzato. Nella sfera pubblica, al contrario, che comprende tutti i luoghi della discussione informale (in primis la tv), i credenti hanno non solo il diritto di utilizzare il linguaggio di Dio e gli argomenti della fede, ma ciò facendo apportano alla democrazia una ricchezza irrinunciabile."
E a crítica que faz parte justamente do ponto de vista de um italiano ateu, como ele se define, que vive em país sabidamente católico, em que as relações entre Estado e Igreja são notórias. D'Arcais simplesmente critica o pensamento de Habermas porque, como ateu e membro de uma sociedade civil "libertária", não pode admitir qualquer interferência do discurso religioso no campo institucional, porque a tradução proposta por Habermas seria simplesmente impossível. Como imaginar um dever do discurso institucional apenas admitir argumentos de sabor confessional se houver uma prévia tradução para argumentos, digamos assim, seculares, quando de antemão a religião toma o aborto como infanticídio e, praticado em massa, como genocídio? Ironicamente afirma:
"E poiché gli aborti si contano per milioni, saremmo di fronte a un olocausto esponenziale. La donna, il medico, l’infermiere, sarebbero moralmente assimilabili alla SS che getta il bambino ebreo nel forno crematorio. Tutto ciò segue logicamente dall’assunto religioso ricordato (e nella sfera pubblica è stato infatti puntualmente agitato dagli ultimi due papi, in circostanze anche emotivamente cruciali: viaggio in Polonia, visita ad Auschwitz)."
Para Flores D'Arcais, portanto, a tese habermasiana das duas esferas, pública e institucional, esconderia na prática um cavalo de tróia, porque traria implícita a adminissibilidade de aceitação do discurso religioso como legítimo em uma sociedade plural como a nossa. Noutras falas, traria um perigosa admissão de que a religião, digamos assim, não seria um assunto apenas privado, mas teria relevo público. É isso, sem o dizer, que o filósofo italiano tanto teme, sobretudo após a insistente tentativa de muitos pensadores e cientistas em circunscrever a questão religiosa ao âmbito privado, apenas.

D'Arcais é duríssimo com Habermas justamente por permitir essa fissura entre aquelas duas esferas, que terminaria por legitimar o discurso religioso na esfera pública, o que implicaria, na visão do italiano, em permitir a sua influência, por via oblíqua, na esfera institucional, mesmo porque seria impossível para ele a tradução em termos seculares da condição humana de criatura de Deus:
"Questa radicale separazione della vita politica in due sfere, governate da criteri opposti quanto all’ammissibilità degli argomenti, risulta perciò in primo luogo fattualmente impossibile. In ogni perorazione parlamentare favorevole a punire penalmente l’aborto, risuonerebbe comunque in filigrana l’eco dell’anatema religioso («sacralità della Vita»), che costituirebbe il contenuto evidente, anche se taciuto, dell’argomentazione, e con ciò verrebbero di fatto riunificate le due sfere.
(...)
Di più: se, con Habermas, si incoraggia nella sfera pubblica l’uso di argomenti religiosi anche non traducibili (come, per sua stessa ammissione, è la «creaturalità»), ciò influenzerà quel «franoso sedimento geologico» che è «la cultura politica liberale», i cui elementi «slittano continuamente, dal momento che essa è ricettiva agli impulsi della comunicazione pubblica». E precisamente nella direzione di legittimare progressivamente – per effetti cumulativi – il ricorso all’argomento-Dio in tutto il processo deliberativo, avendolo reso «ovvio» dapprima nell’orizzonte esistenziale. La ragionevolezza del divieto di esso in sede parlamentare diventerà via via più ostica e infine incomprensibile al senso comune, che avverte come si tratti sempre della stessa posta in gioco, ne discutano i parlamentari per deliberare la legge o ne abbiano discusso i cittadini per scegliere chi dovrà deliberare." (O negrito é meu).
Na resposta dada por Habermas, ele faz uma distinção entre o que seria "secular" do que seria "securalístico", tendo o neologismo o sentido preciso de separar uma visão agnóstica sobre a pretensão de verdade do discurso religioso de uma visão militante contra a própria possibilidade de um discurso religioso. Afirma ele:
"Sul piano storico, non è certo un caso che nei paesi europei a monocultura cattolica sia nato un secolarismo particolarmente battagliero. Ma i miei amici secolaristici non mi devono subito obiettare che – lungi dall’espellere la religione dalla sfera pubblica – essi intendono soltanto restringerla al normale ambito giuridico stabilito dalla Costituzione. Giacché, in tal caso, essi dovrebbero anche guardarsi dallo scambiare il secolarismo della Costituzione con la pretesa di secolarizzare la società. Insomma, dovrebbero imparare a distinguere nettamente «secolare» da «secolaristico». Le persone secolari e non credenti hanno un atteggiamento agnostico verso le pretese religiose, laddove le persone secolaristiche hanno un atteggiamento polemico verso l’influenza pubblica delle dottrine religiose. Essi screditano le dottrine di fede in quanto scientificamente infondate. Nel mondo anglosassone, il secolarismo si appella oggi a un naturalismo hard, che restringe alle scienze della natura il monopolio del sapere socialmente valido. Io ritengo che questo scientismo sia una pura Weltanschauung ideologica. Esso è inconciliabile con un pensiero post-metafisico che subordini – senza cancellare il confine tra scienza e fede – anche le questioni morali, etiche ed estetiche alla forza discorsiva di una ragione tanto secolare quanto non mutilata."
Aqui, Habermas fere o ponto central da questão: os militantes de uma visão dita progressista visam sempre solapar a legitimidade do discurso religioso, buscando destruir a sua validade torética, de um lado, e, de outra banda, existenciária ("Heidegger distingue bem existenzial de existenziell. Existenziell, traduzido como existenciário, indica o Dasein visto do ponto de vista ôntico: trata-se de toda remissão do Dasein singular e concreto em seu ser, condicionado e ontologicamente motivado pelo seu caráter existencial", ensina Paulo Afonso de Araújo). Amputar do ser-aí mundano a vivência religiosa, a sua natureza pública, é um sonho de consumo de muitos que tentam amputar a religião dos debates centrais sobre bioética, por exemplo. Porque sendo uma questão meramente privada, de foro íntimo, estaria fora do fundamento dos debates públicos e, inclusive, institucional, como aliás se observou na análise que o Supremo Tribunal Federal brasileiro foi chamado a fazer sobre a constitucionalidade ou não da manipulação de embriões para obtenção de células-tronco.

Finalizo aqui essas observações, chamando a atenção para para o caráter público da religião. Religião vive-se em comunidade; a fé não é uma força vital solitária. Ela, quanto mais vivida, mas necessita do diálogo, da experiência dos outros, de tomada de posições práticas. E é isso que a militância agnóstica de esquerda ou de direita visam: retirar a religião do espaço público, porque ela é uma forte argamassa social.

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