domingo, 28 de maio de 2017

Apropriação cultural

A primeira coisa que devemos fazer ao falar sobre uma coisa é dizer sobre que coisa estamos falando, para que evitemos os efeitos negativos da polissemia, turbando qualquer chance de entendimento. Se vamos falar sobre apropriação cultural, é preciso primeiramente saber o que significa esta expressão para os que a usam como uma bandeira ideológica. Procurando na internet, encontramos muitas menções ao significado desta locução como ela vem sendo aplicada no discurso das redes sociais. No site Geledés - Instituto da Mulher Negra, há um texto de Bárbara Paes, do site OvelhaMag.com que diz: "A apropriação cultural acontece quando elementos de uma cultura são adotados por indivíduos que não pertencem a esta cultura. Isso inclui o uso de acessórios e roupas, a exploração de símbolos religiosos, o sequestro de tradições e de manifestações artísticas. A apropriação cultural é especialmente terrível quando se trata de elementos de uma cultura historicamente marginalizada e explorada... Um grande problema de sequestrar elementos de culturas não dominantes e adotá-los de maneira descontextualizada, é que as pessoas que fazem a apropriação se beneficiam dos aspectos que julgam “interessantes” de uma cultura, ignorando os significados reais desses elementos, enquanto os membros dessa cultura tem que lidar com opressão diariamente."

Em um outro texto, Stephanie Ribeiro diz que "há séculos uma cultura é dominante e imposta, o modelo a ser seguido é o europeu, consequentemente, o padrão estético é o ocidental e branco. Quando se nota o interesse nos casos citados, esses símbolos sofrem um processo de embranquecimento, elitização e exclusão dos costumes. O turbante que sua empregada fazia não era interessante até aquela amarração sair numa revista. O pior lado disso tudo é que a exclusão vem quando a tradição se torna um bem de consumo caro e de acesso restrito, ou seja, vira “modinha”. É totalmente diferente ser branco – ou passar como branco – e usar um turbante/dread, e ser negro usando as mesmas coisas; os olhares são outros, exatamente porque quando usado pelo protagonista daquela tradição, o símbolo ganha outro significado, ele é político, de resistência e empoderamento."
Para esse pessoal, que copiou o modismo americano sobre o assunto, há sempre embutido um conceito binário opressor/oprimido, elite/excluído, brancos/negros, cuja inspiração sustenta a ideologia da esquerda marxista. Para a esquerda, com o seu caldo ideológico necessário para se retroalimentar, há sempre uma luta de classes - econômica, cultural, religiosa, etc. -, um conflito em que os mais fracos ou marginalizados devem se erguer contra a opressão, real ou fictícia, gerando com isso um discurso de resistência contra seja-lá-o-que-for. No caso da tal apropriação cultural, os argumentos são rasteiros, como se vê dos textos citados e de vídeos que circulam na internet (vide aqui).

A crítica a essa tal "apropriação cultural", tal como tratada por essa turma da esquerda, gostaria, na prática, de criar um gueto cultural: adereços usados pelos negros deveriam ficar segregados, como se as pessoas não intercambiassem valores, ideias, pensamentos, etiquetas, formas de se vestir... Trata-se de uma espécie apartheid de sinal trocado, em que os brancos deveriam se abster de usar aspectos culturais dos negros, porque estariam fugindo das suas raízes históricas de opressão e resistência. Em um mundo marcado por trocas simbólicas, a crítica à tal apropriação cultural só não é totalmente idiota porque há nela uma lógica das esquerdas: conservar o mercado das lutas ideológicas como uma forma de sobrevivência discursiva: sem alimentar ou criar novas formas binárias opressor/oprimido, o seu discurso emotivo perde a força e os que se beneficiam dessa lógica aloprada perdem o relevo, como ONGs, lideranças políticas, meios de comunicação, etc.

A indigência intelectual dos argumentos sobre a apropriação cultural é impressionante. No fundo, o que essa gente está pregando é simplesmente a cultura da segregação, porém sustentada por aqueles que seriam as vítimas, numa espécie de Síndrome de Estocolmo cultural: o oprimido vira o seu próprio opressor, identificando-se com o gueto em que foi historicamente colocado e cujo rompimento foi uma luta histórica sua. Enquanto os americanos adoram quando os outros povos reproduzem o seu modo de ser e de pensar, o seu modo de vestir, as suas representações culturais, o seu modo de vida, essa turma da tal apropriação cultural quer que haja uma segregação da sua cultura, no fundo porque lhe cai bem o papel de eterna vítima.

O interessante é que o fenômeno da aculturação - assimilação de aspectos de uma cultura por uma outra, seja de modo impositivo ou natural - demonstra que a apropriação cultural é um fato comum, ordinário, normal, quando culturas se encontram, convivem e dialogam. O normal de uma cultura, aliás, é querer que os seus traços se perpetuem, inclusive pela sua adoção por outras culturas. Assim é que o pensamento grego e romano persistem até hoje entre nós, influenciando o Direito, a arte, a literatura, a filosofia...

Daqui a pouco vão querer proibir a feijoada  nas nossas mesas...

Sobra-me uma pergunta: por que esse pessoal não vai catar coquinhos?

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