1. Sentido da vida, liberdade humana e solidão.
Leandro KARNAL é um historiador brasileiro que ganhou prestígio e destaque através da divulgação de vídeos com passagens das suas palestras que viralizaram nas redes sociais. E não sem razão. A sua postura cordata, a segurança e a finura expositivas, as citações de autores e textos clássicos ou cultos, o humor sem afetação e distante de qualquer vulgaridade, enfim, são atributos que deram a KARNAL uma crescente lista de admiradores e de pessoas interessadas em ouvi-lo e beber da sua rica fonte intelectual. Diria que ele tem um traço que muitas vezes tem faltado entre nossos pensadores: o asseio da linguagem e fineza de trato. Já de saída, portanto, uma lição para nós do modo de se portar em defesa das suas ideias, que devem se impor não por serem expostas com inflamação e olhos esbugalhados, mas por serem bem estribadas e cativarem os ouvintes.
Com o seu sucesso legítimo, mais e mais interessados passaram a parar para ouvi-lo com atenção. Por isso mesmo, foi convidado para participar como entrevistado do programa Roda Viva, da TV Cultura, cujo vídeo pode ser assistido aqui, gerando comentários e textos críticos, favoráveis ou não, alguns desses últimas até duros (vide um exemplo aqui). Pois bem. Julguei interessante escrever um pouco sobre a entrevista de KARNAL, fazendo algumas ponderações despretensiosas, sem emulação alguma.
Um primeiro aspecto importante que perpassa o discurso de KARNAL é o seu ateísmo declarado. Não apenas afirmou descrer na existência de uma entidade como também asseverou não ter mais nenhuma metafísica dentro de si. Quando chegar o momento da sua morte terá certeza que ali terá se encerrado tudo, absolutamente tudo. E exemplificou a sua falta de fé falando sobre o momento dramático da morte do seu pai, quando não sentiu necessidade de fazer uma oração, porque sabia que tudo havia terminado, ficando ele apenas na memória dos que o amavam, sabendo que ele cumpriu uma vida muito produtiva, muito boa...
Esperei, dada a complexidade do tema, que KARNAL desse alguns passos além. Porque o pensamento científico, qualquer que seja ele com pretensão de ser levado a sério, principia sempre com uma indagação: "por que isso é assim e não de outro modo?". Quando o homem está diante da morte, poderá não ter o interesse em saber para onde vai além do depósito do seu corpo no túmulo, mas por certo terá uma pergunta básica retrospectivamente: "qual o sentido da minha vida individual?"; "qual o sentido da vida humana?". O ateísmo é a resposta que de antemão nega a seriedade ou propriedade da pergunta sobre o sentido da existência. Na breve assertiva de KARNAL sobre a morte do pai há apenas um conformismo: a vida dele foi boa, foi produtiva. Certo; isso basta à sede que temos de eternidade? Porque todos temos, mesmo o mais cético e o mais ateu dos homens, uma sede imensa de autotranscendência, razão pela qual, inclusive, nos comunicamos, pensamos adiante, escrevemos livros, fazemos palestras: para que algo de nós sobreviva nos outros, na história, até mesmo para além da nossa morte...
Não há como negar a centralidade da pergunta sobre o sentido da vida. Como no-lo disse Viktor Emil Frankl (Teoria e terapia das neuroses: introdução à logoterapia e à análise existencial. Trad. Cláudia Abeling, São Paulo: É Realizações, 2016, p.16), "A autotranscendência marca o fato antropológico fundamental de que a existência humana sempre aponta para algo que não é ela própria - aponta para algo ou alguém, ou para um sentido que deve ser preenchido, ou para a existência de outro ser humano que encontra. Ou seja, o ser humano só se torna realmente ser humano e é totalmente ele mesmo onde ele se entrega na dedicação a uma tarefa, no serviço a uma causa ou no amor a outra pessoa, deixando de se enxergar e esquecendo-se de si". Por isso, impressiona que todas as citações eruditas feitas por KARNAL não se apresentem diante da explicação do evento dramático da morte do seu pai, ficando ele quase sem palavras para manifestar o seu absoluto conformismo de que, sim, ele, o seu pai, foi muito produtivo em vida e tudo se consumou, senão a sua lembrança na memória dos seus entes queridos.
Ora, o homem tem na morte o seu fim; mas qual o fim, a finalidade, da vida? KARNAL mostra não apenas o seu ceticismo conformista, mas também tragicamente fatalista: somos sozinhos, individual e absolutamente sozinhos. Só conseguimos compreender o outro vendo no seu "espelho de dores" as nossas próprias dores, compreendendo-o pelo que somos nós mesmos. "Somos sozinhos e morreremos sozinhos", diz-nos KARNAL, falando na televisão para inúmeras pessoas, buscando ser compreendido em seus pensamentos. Prega justamente a solidão que seríamos nós, existências ilhadas e irrelevantes:
"Somos absolutamente irrelevantes diante do universo, de um tempo cósmico que nos torna absolutamente um átomo perdido em tudo isso; só que isso lhe dá a absoluta liberdade. Ou seja, isso que lhe torna uma pessoa, isso que lhe torna um ser humano, os seus atos comprometem toda a humanidade, como diz Sartre, e aí eu digo que, de fato, a solidão não quer dizer o isolamento, mas é a consciência de que a minha dor é a minha dor, e de fato ninguém é responsável pelo meu fracasso e ninguém é responsável pela minha felicidade".
Ora, se os meus atos comprometem toda a humanidade (!), como teria dito Sartre, então haveria uma relação ineliminável entre mim e esta entidade metafísica chamada "humanidade". Aliás, relação essa que a tradição judaico-cristã chama de pecado original. KARNAL, ao afirmar que eliminou toda a metafísica, talvez não tenha se dado conta de que nenhum grande filósofo antimetafísico tenha de fato conseguido fazê-lo; basta pensar no positivismo analítico e no desastre da redução das proposições científicas às proposições protocolares, que outra coisa não poderia recomendar para a ciência senão que "O que não se pode falar, deve-se calar", conforme a proposição final do Tratactus logico-philosophicus. O que é a "humanidade" senão uma abstração, um conceito metafísico? Para o empirismo só poderia existir o homem individual concreto, ou o homem no meio de outros homens. Como o meu ato individual me compromete diante de toda a humanidade, de gente que nem conheço e nem se relaciona comigo? KARNAL ou declinou da sua tese antimetafísica ou fez poesia ou, o que mais me parece, não amadureceu a sua reflexão sobre a existência humana (outra questão metafísica...).
O que seria a "absoluta liberdade" de um ser irrelevante diante do universo? Em que medida essa liberdade absoluta - se é que ela existiria - nos tornaria "pessoa", "ser humano", quando somos socialmente vinculados a uma tradição simbólica, cultural, ética, que condiciona o nosso existir e diz da nossa própria identidade pessoal? Ora, se há algo nos falta como indivíduos situados em um mundo que nos condiciona é justamente uma liberdade absoluta. KARNAL fala, assim, algo incompreensível, contraditório e logicamente em litígio com as suas próprias premissas. Pareceu dizer algo profundo, mas sem muita perquirição damo-nos conta do seu vazio de conteúdo.
A absoluta irrelevância que seríamos diante do universo, da própria história da civilização, não poderia fazer com que os nossos atos comprometessem toda a humanidade, ainda mais se levarmos em conta a proposição de KARNAL segundo a qual ninguém seria responsável pela felicidade ou fracasso de ninguém. Ou haveria aquele comprometimento do meu ato perante toda a humanidade ou a minha profunda solidão me faria antecipadamente irresponsável pelo destino de outras pessoas. Ou uma coisa ou outra: na mesma oração as proposições se chocam em sentido lógico.
2. Contra a direita delirante e absurdamente estúpida
Leandro KARNAL, na entrevista do programa Roda Viva, é crítico dos preconceitos. A tolerância seria uma virtude, desde que não seja com os que defenderiam ideias de direita ou ideias conservadoras. Diz KARNAL, quando perguntado sobre o projeto "Escola sem partido": "Escola sem partido é uma bobagem conservadora. Substituir uma ideologia por outra conservadora. Não existe escola sem ideologia. É uma crença fantasiosa de uma direita delirante e absurdamente estúpida de que a escola forme a cabeça das pessoas e que esses jovens saiam líderes sindicais". Aqui cessou o exercício da tolerância do entrevistado e se apresentou a verdade de uma frase sua anterior, no início da entrevista: "A bipolarização não pensa; a bipolarização adjetiva".
Não tratarei do tema da escola sem partido, que não merece ser abordado com o simplismo ou os ataques disparados por KARNAL. Prendo-me a um outro ponto: se é certo que não existe escola sem ideologia, parece-nos não menos certo que seja legítimo que os nossos filhos sejam educados em escolas que defendam valores mais próximos aos dos pais, inclusive ideológicos. Talvez o ataque aos conservadores - delirantes e estúpidos simplesmente por serem conservadores e não pensarem como KARNAL - decorra justamente do fato de que a direita passou a compreender que a razão da prevalência de valores e pensamentos de esquerda em nossa juventude adviria da ocupação intelectual que a esquerda havia feito nas escolas e universidades.
A "bobagem conservadora", como no-la denominou KARNAL, talvez tenha aparecido com mais força quando surgiram tentativas oficiais de impor a ideologia do gênero no ensino e o modo de pensar esquerdizante, substituindo o papel das famílias pela escola. No Brasil, o chamado Kit-gay foi a expressão mais eloquente dessa política oficialista, que despertou os conservadores sobre a sua verdadeira "crença fantasiosa" até então vigente: a de que a escola seria um campo neutro de ensino. O despertar dos conservadores sobre o aparelhamento ideológico das escolas brasileiras é que levou a essas reações fortes de pensadores de esquerda, surpreendidos com a resistência contrária ao projeto de planificação social da esquerda então no poder: a destruição dos valores religiosos, tradicionais, familiares, em nome de uma sociedade fundada no único valor absoluto: o politicamente correto.
A mudança do tom cordato de KARNAL ao tratar do tema da "escola sem partido" e a recorrência com que se pediu pelos entrevistados para que falasse sobre ele demonstram a importância do assunto e a necessidade da sua análise mais cuidadosa. E isso me pareceu ainda mais evidente quando KARNAL investiu contra a direita por meio do velho e roto discurso planfletário, chamando-a de "fascista", articulando ideias indignas da inteligência e preparo do entrevistado: "Como disse Brecht: 'a cadela do fascismo está sempre no cio', sugerindo a intervenção militar, dizendo que a mulher apanhou porque merecia, e estuprada porque foi leviana". A direita seria fascista; o fascismo defenderia a intervenção militar, o estupro e a submissão da condição da mulher. Logo, a direita é filha dileta do Papa Figo...
Aliás, Brecht é um pensador recorrente nas citações de KARNAL, com a sua ética de guerrilha do humanismo comunista: "O que é um ladrão de banco em relação a um homem que funda o banco?". Nesses pequenos momentos o ascetismo demonstrado pelo discurso de KARNAL cede lugar para o sentido real do seu projeto intelectual, presente em todas as suas concorridas palestras: o ataque por dentro à razão religiosa, à fé, ao conservadorismo, a qualquer expressão daquilo que ele denomina de "fascismo", e que fascismo não é e nunca foi. Usa a técnica de rotular com uma palavra emotivamente negativa e de sentido oco - ao menos no uso com que a emprega - aquilo contra o qual luta ou rejeita, gerando em seus ouvintes a mais absoluta aversão ao modo de pensar que não comungue com a sua ideologia de esquerda. Faltou a KARNAL citar a poesia de Brecht sobre o homem bom, mas aí seria expor demasiadamente a veia poética do seu autor multicitado:
Perguntas a um homem bom
Por Bertolt Brecht
Avança: ouvimos
dizer que és um homem bom.
Não te deixas comprar, mas o raio
que incendeia a casa, também não
pode ser comprado. Manténs a tua palavra.
Mas que palavra disseste?
És honesto, dás a tua opinião.
Mas que opinião?
És corajoso.
Mas contra quem?
És sábio.
Mas para quem?
Não tens em conta os teus interesses pessoais.
Que interesses consideras, então?
És um bom amigo.
Mas serás também um bom amigo de gente boa? Agora escuta: sabemos
que és nosso inimigo. Por isso
vamos encostar-te ao paredão. Mas tendo em conta os teus méritos
e boas qualidades
vamos encostar-te a um bom paredão e matar-te
com uma boa bala de uma boa espingarda e enterrar-te
com uma boa pá na boa terra.
Nada há de fascista nesse discurso poético de Brecht; há aí apenas a ideologia marxista levada a um estado de arte. Essa, consoante se pode observar, é um belo exemplo da tolerância da esquerda. Não acredito, porém, que KARNAL comungue dessa mesma lógica de destruição dos que, mesmo sendo bons, não pensam conforme a esquerda, ainda quando ele manifeste a sua irritação com a tal direita delirante e absurdamente estúpida, essa doença que estava controlada, representando as vozes das sombras, que agora parece novamente voltar à vida pública brasileira.
3. Uma última reflexão sobre o Roda Viva.
O humanismo ateu tem talvez em Proudhon a sua origem. Não se trata do simples ateísmo ou do materialismo, sempre presentes na história da humanidade, mas de uma postura antiteísta e antirreligiosa. Feuerbach e Nietzsche são também pais dessa dramática luta sem trincheiras do homem contra Deus. Foi Feuerbach quem disse que o homem "afirma em Deus o que nega em si mesmo", em seu livro A essência do cristianismo.
O humanismo ateu de Leandro KARNAL não é novo, sendo filho do pensamento de Feuerbach e Nietzsche. O seu ateísmo é um antiteísmo, embora sem a eloquência de uma apologia desabrida contra a religião e a fé. Ele compreende a religião como um fato, um dado, nada obstante que será superado no Progresso da própria evolução humana - há muito de Proudhon nessa visão, no evolucionismo da história e do próprio desenvolvimento da humanidade.
A crença no Progresso, mostra-nos Christopher Dawson (Progresso e religião, trad. bras., É Realizações), que surgiu nos séculos XVIII e XIX, faz com os pensadores acreditem na aurora de uma nova época comandada pela Razão, em que o Homem passaria a ter a centralidade da história, liberto de Deus: "E o mesmo espírito reaparece nos reformadores revolucionários políticos e sociais do século XIX, que apresentavam uma crença quase apocalíptica na possibilidade de transformação da sociedade humana - uma passagem abrupta da corrupção à perfeição, da escuridão à luz" (pp.62-63).
Esse humanismo ateu, nada obstante, com a sua fé no Progresso, encontra em Marx o seu adversário ferrenho. As sociedades sem classes, pranteada por KARNAL sub-repticiamente ao falar sobre a nossa, tão cheia de diferenças e patamares sociais, nada mais seria do que o produto desse Progresso, obtido pela planificação social, que teve em Marx o seu formulador com o comunismo alcançado após a destruição dos inimigos burgueses. Ele põe fim ao humanismo renascentista porque menoscaba o indivíduo para olhar a história pelo coletivismo; é o social que conta, não o indivíduo. Em Marx a ideologia do Pregresso ganha um sentido próprio e definitivo: o fim da história com a destruição das contradições do capitalismo e o surgimento do comunismo, última etapa da realização da humanidade.
Nicolai Berdiaev, um dos mais profundos filósofos russos a fugir do regime comunista, demonstrou como a ideologia do Progresso nada tem de científica; hoje, bem sabemos os resultados das tentativas de aplicação da engenharia social marxista, em que pese ainda tenhamos os que dão aos defensores de ideias baseadas naquelas premissas o nome de progressistas. Tivessem lido Bardiaev, dariam-se conta que há muito de pensamento místico e religioso naquele paraíso na Terra pensado por Marx (El sentido de la historia, trad. esp., Ecuentro Ediciones, 1979, esp. p.135 ss.).
Encerro esse breve texto com um alerta. Más ideias podem ser vendidas com a vestimenta elegante das citações eruditas; continuam, contudo, a ser más ideias. Os antiteístas estão mais presentes do nunca, sobretudo em uma época pautada pelo relativismo moral e pela lógica policêntrica do politicamente correto, uma espécie de moral sem moral e sem raízes, flutuando entre as paixões do momento e a moda do que parece ser cool à vista da maioria.
KARNAL fala muito bem; por vezes não diz coisa com coisa, mas o faz com a adequada empostação de voz de alguém marcado pela educação jesuíta. Deus ingressa em sua fala como um mito a ser destruído pelo humor sarcástico, pela ridicularização dos que ainda acreditam nessas bobagens de anjos da guarda. Ao ridicularizar sutilmente - por vezes, outras nem tanto! - a crença, promove a erosão dos valores religiosos. Sim, a cadela do ateísmo militante está no cio, como nunca antes na história da humanidade.
O humanismo ateu, mostra-nos Henri du Lubac, busca a destruição do verdadeiro humanismo, aquele que encontra em Deus o seu fundamento último. E sem Deus, sem a moral que brota da fé, tudo será permitido...