sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

O demônio do meu quarto "ou "Se avexe, não, Menino!".

Papai e mamãe trabalhavam muito. Ele, fiscal de renda concursado, muitas vezes tinha que dar plantão no posto fiscal na estrada. Quando o expediente era normal em Junqueiro, além das atividades como fiscal, assumira ele a direção do Ginásio Nossa Senhora Divina Pastora, onde atuava pensando em dar às famílias mais humildes acesso à educação. Tempos difíceis, de dedicação gratuita, apenas por pensar em contribuir com aquela comunidade. Ela, a mamãe, diretora concursada do Grupo Escolar Padre Aurélio Góes, do ensino fundamental, além de assumir as suas responsabilidades normais, ainda lecionava à noite no Ginásio, também com a finalidade de contribuir com a formação dos mais humildades e de toda uma geração de junqueirenses.

Tinha eu uns sete anos de idade. Meus irmãos estudavam já no Ginásio, à noite, enquanto eu estudava sozinho pela manhã, no início do ensino fundamental. Com isso, as minhas noites eram, normalmente, de brincar com amigos até umas 7h00, tomar banho e ser conduzido à cama por minha babá, a Irene. Lembro-me da Irene com viva saudade. Quantas tardes corria eu pelo quintal, nu, e ela atrás de mim, tentando levar-me para o banho, que vez por outra eu procurava fugir. "Vou dizer ao seu pai mais tarde!", saia gritando para me convencer, porque não havia maior certeza do que a nossa obediência cega às ordens paternas, garantidas pelo respeito e, diante do atrevimento eventual, de uma boa sova de cinturão.

Pois bem. A Irene me colocava na cama para dormir e, independentemente do meu sono ou não, ia namorar com o seu noivo, o Luís. Namoro de porta, bem comportado. Eu ficava na cama, olhando para o telhado, as vigas de madeira, o barulho das lagartixas, o passar eventual de um ou outro rato, o voo de algum morcego brincalhão... Nada me assombrava, já fazendo parte do meu cotidiano.

Havia, porém, um desenho feito na porta do quarto. Não sei quem o fez. Era o desenho infantil de um rosto, com orelhas pontiagudas, que à noite parecia a figura de um demônio. Ficava em frente à minha cama. Não dava para não vê-lo. E muitas vezes, morria de medo, ali, sozinho, acompanhado apenas por aquela figura a causar arrepios.

Ainda me lembro do desenho. Em detalhes. Aquela imagem que me causava enorme medo, que me acompanhava em minhas noites, até conseguir dormir pelo cansaço. Tão forte o seu efeito em mim que nunca falei sobre ele com os meus pais. Era um pacto de silêncio não negociado.

Não raro, ainda que estivesse com calor, cobria-me integralmente com o lençol, como se o pano pudesse me proteger, guardando-me das maldades do demônio do meu quarto. E o gesto me dava segurança, como se tivesse ele dotes mágicos, a me esconder do bicho maldoso.

O demônio do meu quarto vive em mim. Sempre viveu. Sempre esteve presente em minha vida. E foi enganado, até hoje, pelo lençol que teimo em usar, para me esconder dos seus desatinos. Às vezes, é certo, tira-me um pouco o sono, maltrata, desperta aquela criança que ainda habita em mim.

Domar os demônios que carregamos é sempre um imenso desafio. É a aventura de uma vida inteira, por vezes.

Lembrei-me dessa história hoje, na virada do ano, para dizer ao menino que ainda sou que não se angustie, que haverá sempre lençóis para nos proteger, e que a vida é sempre uma linda aventura, em que os demônios são criaturas a serem vencidas. "Menino, não se avexe, não! O dia vai raiar de novo, o sol vai brilhar, os seus olhos verão a vida palpitando em sua frente e você notará que, sim!, a noite se foi!".

Feliz ano novo! Que o brilho da luz do dia 1º de janeiro ilumine o nosso coração, cuide da nossa alma, e mostre a cada um de nós um horizonte de fé, paz, saúde e felicidade.

Que Deus nos abençoe a todos nós, amém!


Um comentário:

  1. Acredito que todos nós temos nossos demônios escondidos atrás de alguma porta.
    Lembro-me ainda de quantas noites passei com a cabeça coberta por um lençol com medo do escuro e do que ele poderia estar a esconder, mas a manhã tudo diluía com a luz do sol, e saber disso já me fazia acalmar e aguardar o novo amanhecer.
    Obrigada por me fazer lembrar disso, e por estar sempre presente em nossas vidas.
    Que este ano que se iniciará em poucas horas, lhe traga muita saúde, paz e felicidades!
    Abraços!!!!!!

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