quinta-feira, 3 de outubro de 2013

O BOBO-DA-CORTE E OS BOBO

Perguntou ao bobo-da-corte:

- "Por que és tão bobo? Tens necessidade de fazeres rirem de ti os outros?"
O bobo-da-corte pôs-se a pensar demasiado e terminou por vituperar o indagante com não sei quantos impropérios. Depois, amuado, disse-lhe:
- "Minha essência é fazer os outros rirem de mim, de minhas pilhérias... Não fosse assim, bobo não seria, muito menos da corte real. Afinal, passo o dia a me dedicar esforçadamente a construir tiradas para que se riem delas. A minha profissão é ser bobo, ora pois."
O indagante, então, sorriu com afeto. - "Mas e os livros que lês tão acotiadamente? Que fazes com tanta sabedoria de que és portador?"
O bobo-da-corte continuou amofinado.
_ "Meus conhecimentos são para mim mesmo. Não os quero partilhar, porque foram obtidos com os sacrifícios de horas de dedicadas leituras. Prefiro que os outros me conheçam pelos meus gracejos, não pelas minhas convicções ou pelos produtos das minhas meditações."
- "Ah! - ponderou o indagante -, tu preferes idiotizar os teus ouvintes e guardar os tesouros que adquiristes. Compreendi. Tu não és bobo coisa alguma; bobos são todos os que te ouvem e se riem em kkkkkkks e kikikikikis, deixando de ouvirem coisa de melhor proveito."
O bobo-da-corte piscou o olho e riu-se muito. O indagante, enfim, descobrira a lógica da coisa toda. O bobo-da-corte é profissional; os verdadeiros bobos são os desocupados que riem de qualquer chiste ou facécia, perdendo de se dedicarem a coisa de melhor proveito.

quinta-feira, 26 de setembro de 2013

Depressão

Iam nuas as horas, andrajos postos ao lado, a alma sem vestígios de qualquer recato. Era consigo mesmo, sem que houvesse qualquer distração. No deserto em que andava, buscava a esperança que alimenta. Baldadamente. Porque não se pode encontrar nada quando deu-se por perdido de si mesmo.


Passos pesados, andar lento, a opressão do mundo às espaldas. Sentia-se desalentado, com escuras tonalidades do dia a lhe tomarem a visão. A vontade de parar só não era maior que o desejo náufrago de debater-se até perder o resto das forças que ainda teimava em fazê-lo respirar ofegantemente. E sentia tudo girar. O mundo rodava sem chão.

Gritou para si mesmo, porque voz não tinha. Segurou a cabeça entre as suas mãos, pedindo para descer da vida. Já não sentia o corpo, o tempo, as razões de viver... Tudo era desolação. "Salva-me! Salva-me!", repetia para si, como se estendesse a mão para alguém que não o via. As lágrimas molharam a sua sequidão; tudo era nada.

No fundo labirinto de si mesmo ouviu distante uma voz chamando-lhe pelo nome, ofertando ajuda. Parecia-lhe tão longe, mas estava ali ao seu alcance. Abriu os olhos vermelhos. Pediu em um profundo soluço ajuda. Já não podia sair de si mesmo sozinho, tão grande a sua perda de sentido. E entregou-se à sorte. E deixou-se ajudar. Porque as suas forças secaram. E assim pode encontrar algo sólido onde firmar pela vez primeira os pés...

sexta-feira, 20 de setembro de 2013

Papa Francisco, moral católica e flexibilidade

A visão latinoamericana é sempre mais flexível em relação aos valores morais. Somos, por assim dizer, mais condescendentes, menos afeitos à rigidez. Há um risco muito grande, portanto, quando olhamos o mundo a partir exclusivamente do nosso ponto de vista.

Parece-me que o Papa Francisco sofre um pouco desse mal vezo. Ao falar de modo flexível sobre temas caros à moral católica, como o aborto, por exemplo, que é a expressão mais eloquente do desrespeito à vida (que, intrauterina, não tem a possibilidade de autodefesa), o Papa passa uma ideia perigosa de sinal trocado, invitando a que, na vida privada, as pessoas deixem de fora justamente os preceitos religiosos que deveriam fazer vida e sob os quais deveria pautar os seu atos.

Ao Papa é dado ser luz para os católicos e não-católicos. Mostrar acolhimento e compreensão aos pecadores (entre os quais todos nos incluímos como dado de fé; todos precisamos do gesto salvífico de Cristo na cruz!). Nada obstante, em temas morais, a flexibilidade que se pode conceder nos casos individuais, conforme as circunstâncias concretas, não corresponde àquela defendida como princípio universal. Exemplificando: a Igreja não admite relações homoafetivas, por princípio, porque o casamento é um sacramento destinado a homem e mulher. Não poderia a Igreja, sem trair o Evangelho, adotar sacramentalmente a união entre pessoas do mesmo sexo. É algo que refoge à moda, que pertence à palavra de Deus. A Igreja não pode dispor dos tesouros da fé, sendo apenas a sua guardiã. Esse é o princípio universal da moral católica.

Isso, contudo, não implica em rejeitar os homossexuais. A Igreja pode até acolher casais homoafetivos que vivam uma relação sincera de amor, porém com acompanhamento pastoral e dentro de limites precisos: trata-se de uma relação que impede a vida sacramental, como ocorre, por exemplo, com os casais de segunda união. É dizer, a Igreja acolhe os seus filhos, porém sem abrir mão dos pontos cardinais da moral católica, baseada na tradição oral e escrita.

É disso que o Papa Francisco fala, porém sem a necessária prudência de pastor do povo de Deus. Expõe uma flexibilidade admitida diante de situações concretas como princípio universal, o que é grave erro em um mundo sem um eixo de valores seguros em que vivemos. Cabe à Igreja o duro papel de ser luz do mundo e sal da terra; cabe à Igreja de Cristo a dura missão de pregar a palavra de Deus, mesmo quando nos recusamos a ouvi-la. Não foi assim, ao seu tempo, com Jeremias? (Jer 1,5-9: "Antes mesmo de te formar no ventre materno, eu te conheci; antes que saísses do seio, eu te consagrei. Eu te constituí profeta para as nações. Mas eu disse: "Ah! Senhor Iahweh, eis que eu não sei falar, porque sou ainda uma criança!" Mas Iahweh me disse: Não digas: "Eu sou ainda uma criança!" Porque a quem eu te enviar, irás, e o que eu te ordenar, falarás. Não temas diante deles, porque eu estou contigo para te salvar, oráculo de Iahweh. Então Iahweh estendeu a sua mão e tocou-me a boca. E Iahweh me disse: Eis que ponho as minhas palavras em tua boca.").

Esse é o papel da Igreja: proclamar profeticamente a palavra de Deus. Ainda quando o mundo a rejeite. Ainda quando grupos de pressão a ataquem. Ainda quando os cristãos sejam perseguidos. Se a Igreja for pop, por certo estará traindo o Cristo Jesus. Ele que não foi pop, não veio para fazer sucesso e ser compreendido. Ele não quis se fazer compreender; quis antes de tudo converter.

Falo sobre mim. Dou o meu testemunho. Em minha privada tenho falhado em face desses princípios da moral católica. Isso não me autoriza, porém, a dobrá-la à minha vontade, à minha conveniência. Já dizia o Senhor, através da boca de Isaías: "Com efeito, os meus pensamentos não são os vossos pensamentos, e os vossos caminhos não são os meus caminhos, oráculo de Iahweh." (Is 55, 9 ). Cumpre-me, então, sinceramente arrepender-me e buscar adequar a minha vida à palavra de Deus. É fácil? Evidente que não! Já o dizia São Paulo aos Romanos (Rm 7,19-20): "Com efeito, não faço o bem que eu quero, mas pratico o mal que não quero. Ora, se eu faço o que não quero, já não sou eu que estou agindo, e sim o pecado que habita em mim".

A Igreja que amo é a Igreja de Cristo! Não a igreja que que busca estar cheia, não a igreja que se converte ao mundo ou apregoa milagres a torto e a direito. A Igreja de Cristo é aquela que proclama a sua palavra e que a preserva, mesmo sendo incompreendida. Por isso, penso que o Papa Francisco, com a sua doce humildade, não pode dar sinais dúbios em matéria de fé e em matéria moral, porque pesam sobre os seus ombros dois mil anos de história e bilhões de fiéis.

Amo Francisco, como meu pai na fé. É um sinal de humildade e pobreza. Mas há de ser também um sinal eloquente da fé católica em um mundo que não se cansa de dizer não a Deus.

domingo, 18 de agosto de 2013

Trabalho duro!

Passo horas lendo, refletindo, debulhando livros. Porque para ser o melhor que posso ser é preciso muito TRABALHO DURO. O objetivo não é ser melhor do que os outros; é ser o meu melhor, o resultado dos meus esforços. Horas no silêncio. Horas sabendo que o mundo lá fora corre alucinadamente, enquanto eu estou aqui, sentado, os livros abertos...

Quantas vezes tenho a sensação de que estou perdendo tempo... Não raras vezes me vem uma ansiedade, uma vontade de estar na rua, de travar relações com as pessoas, de estar correndo o tempo todo como elas. Mas paro. Concentro-me. Há ainda muito TRABALHO DURO pela frente. Os livros densos fazem com que os leia página por página, linha por linha, sorvendo cada palavra como fossem o sumo da laranja que chupamos com sede ingente.

E a leitura mistura-se com a comparação com outros textos; articulamos ideias contrárias, pesamos os argumentos, caminhamos no meio de um sentido ou de outro e logo alcançamos uma nova forma de ver e um momento de suprassumir o que lá estava e se pôs para mim.

(Parêntese: Dizia Hegel na Fenomenologia do Espírito: "O suprassumir ('aufheben') apresenta essa dupla significação verdadeira que vimos no negativo: é ao mesmo tempo um negar e um conservar. O nada, como nada disto, conserva a imediatez e é, ele próprio, sensível; porém é uma imediatez universal” (FE, p. 84, §113)").

TRABALHO DURO! Não há outro meio para o sucesso em qualquer área. Dedicação, esforço, empenho, coragem, paciência, perseverança, fé...

Muitas vezes as pessoas perguntam: "Para quê isso?, por que tanto esforço?, por que razão tantas horas lendo?, por que investir tanto em livros?". Perguntam como a dizer: "Você está perdendo tempo!". Sim, as pessoas teimam em adjudicar aos nossos esforços a pecha de inutilidade, de excesso, de falta de senso. Por quê? Porque incomodamos. Saber o que se quer, saber para onde se vai simplesmente incomoda.

Quantas vezes fui e sou tachado de arrogante, de orgulhoso, de pedante, de vaidoso? As pessoas rotulam o esforço, a perseverança. Em um mundo sem convicção, em que tudo é nada e nada é tudo, ter posição incomoda muito. É, pois, preciso ter coragem para ser o melhor que podemos ser. Ouvir menos os "conselhos" e as críticas alheias e estar mais atento ao desafio que se quer alcançar. E mui, muito TRABALHO DURO.

Sugiro que assistam o vídeo abaixo. Vale a pena.

Ser grande

Nada mais humano do que as nossas limitações ou os nossos erros. Às vezes - por cupidez, orgulho ou vaidade - deixamos de fazer uma análise de quem somos, o reconhecimento sincero das nossas limitações e, não menos importante, as nossas virtudes.

Sim, uma boa autoanálise implica a compreensão do que temos de melhor e de pior; o que é a nossa fortaleza e quais são as nossas fragilidades; o que podemos crescer e o que já sabemos de antemão, não como desculpa mas com senso de realidade, o que está além de nós. À boca cheia ou à boca miúda, deixem que falem de nós. Convém por vezes escutar, se a é séria e quer o nosso crescimento. Porém não devemos pautar as nossas ações ou os nossos empreendimentos a partir das opiniões alheias, que mais das vezes nada mais são que um olhar invejoso ou rancoroso, decorrente das suas próprias frustrações ou limitações.

Quem quiser ser grande, saiba-se sempre pronto a aprender, a ouvir e a defender com unhas e dentes as suas próprias convicções bem fundadas. Que não defendamos as nossas posições quando fundadas em base frágil, apenas por orgulho ou falta de humildade. Reconhecer o erro, rever a compreensão sobre um determinado tema, não é prova de incompetência nem de fragilidade; apenas os grandes conseguem mudar quando a mudança de pensamento é o razoável ou o correto, não para agradar a terceiros, mas por compromisso com a verdade e consigo mesmo. Sejamos simples. Simplicidade não é ausência de profundidade, porém. Simplicidade é ser profundo sem ornamentos ou arrivismos. É ter posição porque meditou sobre o tema, sem encapelações, mas com o desejo sincero de aprender e compreender.

Os sábios são simples e profundos no pensar; o hermetismo no mais da vez esconde a fragilidade do pensamento e frágil honestidade intelectual do pensador. Por fim, saibamos que a vida é um dom e merece ser cuidada, levada a sério. É na vida que a nossa experiência se dá, que somos o que somos e podemos ser melhores a cada dia como pessoas. Levemos a sério, mas sabendo sorrir, brincar e, de quando em vez, deixar estar. Assim, saborearemos a aventura que somos nós.

Breves e soltas (VII)

I.
Diante das frustrações que a vida a cotio nos oferece, diante das dores, não se espera que haja platitude, porém a capacidade de se reerguer, de encontrar em si mesmo a força para a busca da felicidade.

II.
A felicidade não é um estado contínuo; é, na verdade, momentos de pequenas realizações. A felicidade definitiva apenas se obtém no encontro com Deus face a face. Do mesmo modo, não há dor definitiva que não possa ser superada.

III.
"Infelizmente, por tais e tais razões acabou" é uma frase muito mais difícil do que dizer "eu te amo!" É que o começo é movido pela esperança; o fim, todo fim, é sempre uma história que se consumou ainda inacabada e que se encerra sem que haja amanhã possível.

IV.
Os mandatos eletivos perderam legitimidade. O vazio de representatividade levou a população às ruas sem que houvesse uma pauta. Havia sobretudo um sentimento difuso pedindo mudanças. Os sindicatos e partidos que desejam tomar para si a legítima manifestação livre do povo são enganadores. Tentam manipular a expressão livre daquele sentimento difuso e genuíno.

V.
As associações de classe representam apenas a classe. São, na essência, corporativistas, têm espírito de corpo. No debate público sua legitimidade repousa justamente na sua parcialidade; não defendem outro interesse que não o privado da corporação que representam.

VI.
A sanção de aposentadoria compulsória é a adoção das férias remuneradas pelos malfeitos reconhecidos e transitados em julgado.

VII.
O Ministério Público é fundamental para a democracia e deve ser fortalecido, devendo ser mantido o seu poder investigativo, obviamente observados os marcos fixados na Constituição Federal.

VIII.
Na República não há poderes ou órgãos acima do bloco da legalidade ou dos princípios e normas constitucionais. O controle social deve ser estimulado, diminuindo o corporativismo que protege maus agentes públicos investidos em carreiras de Estado.

IX.
É fundamental ampliar os poderes do Conselho Nacional do Ministério Público, retirando do Corregedor-Geral o poder de dar a última palavra sobre o arquivamento de processos disciplinares. Essa deve ser uma atribuição do pleno, com maior representatividade e menos influenciado pelo corporativismo. O Conselho Nacional de Justiça está bem mais à frente nesse ponto e merece aplausos.

X.
Na República, os que ocupam carreira de Estado ou cargos públicos em geral devem ter prerrogativas, mas não devem ter privilégios. Essa é a lição que vem das ruas.

Destino


O destino é a desculpa que inventamos para o sucesso fácil ou para as nossas impotências. O fracasso, a incompetência, as impossibilidades, a covardia ou o medo não são destino nem sina: são realidades que nós mesmo criamos ou circunstâncias naturais da vida. Destino não se traça na maternidade; destino se constrói com as próprias mãos quando se acredita que, sim, nós podemos; sim, haveremos de lutar por nossos sonhos.

Todos os dias, ao acordar, devemos sempre dizer: "Mais um dia para eu construir o meu destino!".

Breves e soltas (VI)

 I.
 Há decisões pessoais dolorosas que às vezes temos que tomar. Não raro o levar adiante indefinidamente certas situações da vida, mesmo que seja com a melhor das intenções, só retardará sofrimentos e dores que podem ser superadas mais rapidamente quando não há postergações.

 II.
 A verdade é sempre o melhor fundamento para as decisões. Quem se engana nas razões errará, com toda a certeza, nas conclusões.

III. 
Nem sempre o "é para sempre" sincero se converterá no "é para sempre" real. Entre a crença e a realidade, por vezes bastas, aparece um fosso intransponível de novas razões. 

IV. 
A dor do outro, que se quer bem, quando somos a sua causa, é dor sentida duplamente. Sobretudo se não somos insensíveis ou insinceros. 

V.
Diante da vida há que se ter coragem. Viver intensamente, agir com toda a verdade do seu ser, errar querendo acertar, corrigir depois de errar. A vida é para quem tem coragem e vontade de desafiá-la. 

VI. 
O sentido da vida não está no outro. Está em nós. Ninguém, por mais importante que seja, é o sentido da vida de alguém ou a razão última da felicidade. Somos nós mesmos os construtores da nossa história e do nosso futuro. 

VII.
A frase "eu não sei viver sem você!" é uma negação de si mesmo. Viver é uma aventura da realização do eu. Por mais importante que alguém seja na sua vida, não será nunca a última razão do seu viver, da sua busca pela autorrealização. 

VIII. 
Há quem se satisfaça com a infelicidade ou a dor do outro. Há quem se realize com o insucesso alheio e sinta um estranho prazer em dizer "eu não lhe disse!?). São pessoas de coração amargo, que não se realizam consigo mesmo. Seu prazer está na infelicidade alheia.

IX. 
Nem sempre a vida é uma estrada reta, sem percalços. Aliás, quase nunca é. Por isso, é curial ser indulgente com as suas intercorrências, se comprazer com os desatinos, buscando sinceramente acertar ou corrigir os erros. Só quem não vive a sua história não errou ou não se arrependeu. 

X. 
Não tenho todas as respostas. As perguntas sempre pululam em mim. Se não sei responder, dou passos em frente, sempre querendo aprender. Dos meus erros, cuido eu. Se firo alguém, peço desculpas. Sou sinceramente um caminhante buscando a trilha correta. 

XI.
Sê complacente. Nem tudo é absolutamente certo ou errado. A vida tem matizes que permitem interpretações diversas. Sê, então, humilde.

quarta-feira, 17 de julho de 2013

Meu Pontes de Miranda

Havia terminado o curso de Direito. Fazendo o Exame de Ordem vi no mural um pequeno aviso: um advogado vendia os 60 volumes do "Tratado de direito privado" de Pontes de Miranda. Fui para casa ansioso. Sabia que os servidores públicos estavam numa fase difícil, com atrasos de pagamentos. Comprar uma coleção daquelas não seria fácil. No jantar, comentei com o papai sobre aquela possibilidade. Ele sabia o quanto lia Pontes de Miranda, sempre através de cópias ou empréstimos.

Era eu pontesiano, estudando com profundo interesse o pensamento genial do jurista alagoano, um dos maiores gênios que as letras jurídicas produziram. Eu, é certo, vinha me esforçando para comprar meus livros sem espremer tanto o orçamento lá de casa. Afinal, era frequentador assíduo da extinta livraria Caetés, onde comprava excessivamente livros, jurídicos ou não. Certo mês, o papai me chamou a atenção, porque fiz gastos elevados demais: "Filho, estude, compre seus livros, mas combine antes, porque vocês são quatro filhos. Assim, você desestrutura o orçamento de casa".

De fato, a minha avidez precisava ser ponderada. Para não deixar de comprar meus livros sem prejudicar os outros irmãos, encontrei uma solução: dar aulas de reforço a meninos e meninas da minha rua. E foi assim que virei professor de matemática (matéria que detestava), ensinando alunos em apuros, com baixo aproveitamento. Seis meses assim, que me renderam dinheiro para torrar em livros. E - que bom! - meus alunos passaram de ano com boas notas.

Bem, mas comprar a obra de Pontes de Miranda estava além das minhas possibilidades. Já gastava com livros a minha mesada, o dinheiro que ganhava dando aulas e o que mais os meus pais davam para pagar outros livros que eu comprava. Aliás, eu andava sem dinheiro. Tudo era para livros. A minha namorada, quando saíamos, era quem pagava a conta. Ela já sabia desse pequeno detalhe...

Diante da possibilidade de dispor daquela obra e da minha dedicação, o papai me olhou e disse que iria comigo ver o dono da coleção de Pontes de Miranda. Fiquei numa expectativa absurda. Quase não dormi. E fomos lá, juntos, no dia seguinte. A coleção era muito conservada; os livros, pensei eu, nunca foram abertos e lidos. O papai tentou negociar. O advogado, dono do "Tratado", mostrou-se irredutível. Precisava do dinheiro e não abria mão do valor. Conversa vai, conversa bem, ele fez a seguinte proposta ao papai: "O sr. leva o Tratado por esse valor e eu cedo, sem custos adicionais, esses outros livros", disse, apontando para uma outra obra de Pontes de Miranda, 17 tomos, os "Comentários ao Código de Processo Civil".

Fiquei doido! Querias muito também aquela obra. O papai me fitou. Viu o brilho nos meus olhos. Não me perguntou nada. Minha expressão dizia-lhe tudo. Ele virou-se para o advogado e concordou. Comprou os livros, realizando o meu sonho. Lembro-me, não sem emoção, daquele momento: levando os livros para o carro, colocando-os na mala, ao ponto de enchê-la: 60 tomos do "Tratado de direito privado" e mais 17 dos "Comentários ao Código de Processo Civil". E o advogado, querendo livrar-se dos livros da sua biblioteca, ainda me deu algumas outras boas obras, que me servem até hoje.

Foi um sonho. Arrumar aqueles livros em estantes compradas para recebê-los, passar a ler as obras podendo riscá-las, fazendo anotações. Uma alegria imensa. E essas obras ainda hoje são lidas, consultadas, fazendo parte da minha formação intelectual. Foi estudando Pontes que pude criar minha teoria da inelegibilidade.

Bem, aquele esforço do papai, naquele momento difícil, foi fundamental para a minha formação. Achavam, ele e a mamãe, que eu me excedia com tanta leitura e livros, mesmo tendo sido essa a educação que deram. Mas eu era demais da conta; virava noites lendo. Mesmo sem entender, apoiaram, porque a causa era justa. E foi por causa deles que pude me desenvolver intelectualmente. Lembrei dessa história hoje e quis compartilhar. Sou grato demais aos dois, que me deram tudo o que precisava para ser gente e ter valores.

quinta-feira, 23 de maio de 2013

Breves e Soltas (V)

I.
Nada pode desafiar tanto a nossa humildade do que o sentimento de impotência diante do fato consumado.

II.
O passado é a nossa história já escrita, as nossas escolhas feitas, os nossos riscos assumidos. O nosso ontem impregna o que somos hoje.

III.
O que é o amor senão a aceitação do outro e as suas circunstâncias? Por isso o amor faz humildes até mesmo os soberbos. Acolhe inclusive o que renega.

IV.
Apenas em caso de violência ou entre pessoas profundamente vazias o ato sexual não é um profundo momento de entrega. O sexo casual, porém, é sempre o vazio partilhado, a objetificação do outro junto com a negação de si mesmo.

V.
Há quem queira se enganar a vida toda para industriar uma relação equilibrada. Mas o engano de si ou do outro apenas cria o simulacro de uma amor sincero. A verdade é sempre o sustento do amor viçoso e profundo.

VI.
Não há amor verdadeiro sem dor. Amor indolor é uma contradição em termos.

VII.
O que é o corpo da mulher amada? Um templo, solo sagrado, tábua dos mais densos suplícios. É ali onde o homem se deixa inteiro, se desveste de si para realizar em plenitude a mulher amada.

IX.
Numa relação a dois, a verdade. É apenas a verdade que faz possível o dia seguinte, ainda que ela deixe marcas profundas. O amor sem marcas é o amor imaturo, que não atravessou dia após dia a floresta densa e espinhosa do convívio.

X.
Dá-me as tuas misérias; sem elas, como posso te amar inteiramente? Dá-me os teus erros e o arrependimento sincero; sem eles, como poderei exercer a dolorosa humildade suplicada pelo amor autêntico?
Dá-me, sobretudo, a tua sinceridade; sem ela não há amor possível nem futuro a esperar os frutos da vida a dois.

segunda-feira, 28 de janeiro de 2013

ORAÇÃO DA SEDE DE SENTIDO

Há em mim sede de infinito. Uma inesgotável necessidade de Ti, meu Senhor e meu Deus. Olho o horizonte, rezo diante da Tua grandeza e Te bendigo. Tu és a fonte de salvação; da salvação de mim mesmo, das minhas fraquezas, dos meus medos, das minhas angústias diárias. Tu és a fonte de sabedoria, o acalanto de paz, a certeza de sentido.

Estamos tão entretidos com a correria da vida. Escamoteamos tanto a sede de sentido que habita em nós. Mais da vez negamos a nossa limitação, vivemos como se Tu não existisses, fraturamos a nossa razão de ser. E nos perdemos. E andamos por caminhos que não são os Teus. Ouvimos demasiadamente a serpente que diz de nós: "E vós sereis como deuses, versados no bem e no mal!".

Prostro-me. Ponho-me diante de Ti. E mais uma vez Te bendigo: "Tu és meu Deus. Sou Teu servo. Na minha pobreza, com os meus pecados, na solidão quando estou sem Ti". E sinto o peito encontrar a paz, porque És toda a paz. Tu és o sentido da vida e da morte; a razão maior do que somos; a medida de todas as coisas. Tu és o meu Deus, o Deus encarnado em Cristo e misticamente corporificado na Tua Igreja; corpo cuja cabeça é o Cristo Jesus. Amém.