sábado, 19 de novembro de 2011

Vida

A vida tem esquinas, tem caminhos largos, tem atalhos...

Há vida! Na palavra que malfere o coração,

no olhar que perdeu o brilho e se fechou,

no sorriso que empalideceu e murchou.

As esquinas iniciam possibilidades;

os caminhos largos, a segurança do já pronto;

os atalhos, os riscos das facilidades triviais.

Quem se perde de si perde o olhar, o sorriso e o coração.

Há vida! Há sempre a chance de recomeçar...

Sobre orgulho, amor e vertigem: uma leitura de Dostoiévski

Há dois textos meus sobre o sequestro e morte de Eloá, em Santo André, por um jovem atormentado pelo amor (por ela) e a rejeição (dela para ele). Lindemberg chocou o país com o sequestro da sua ex-namorada e, depois, com o tiro que lhe roubou a vida. O amor do outro que esmigalhou o amor por si mesmo, ao ponto limite de expor publicamente as suas víceras, naquilo que Milan Kundera (em "A Insustentável Leveza do Ser") tão bem definira como sendo "vertigem". O texto integral pode ser lido nesse link (http://migre.me/6c5kv).

Há uma passagem que reproduzo aqui:

O amor de si não exclue o amor pelo outro; o pressupõe. A admiração pelo talento alheio necessita, para ser sadio, da convicção sobre os próprios talentos, porque senão o reconhecimento vira ressentimento e inveja. Com essa afirmação, podemos entender a loucura de Lindemberg, o seqüestrador de Santo André: ele aprisionou Eloá e depois a matou porque não se amava o suficiente, ao ponto da admiração e da necessidade do amor dela por ele esmagá-lo. O sentimento de rejeição decorre de ressentimento: será que ela encontrou alguém melhor do que eu? Será que eu sou insuficiente para ela? Ora, como lhe falta orgulho por carecer de amor próprio, restou-lhe a vertigem, no sentido empregado por Kundera. De fato, em "A insustentável leveza do ser", Milan Kundera descreve de um modo único o sentimento de vertigem. Diz ele, em seu primoroso romance:

"O que é vertigem? Medo de cair? Mas porque temos vertigem num mirante cercado por uma balaustra sólida? Vertigem não é o medo de cair, é outra coisa. É a voz do vazio debaixo de nós, que nos atrae e nos envolve, é o desejo da queda do qual nos defendemos aterrorizados."

Noutra passagem, ainda mais rica, fala-nos de modo mais genuíno e profundo:

"Era a vertigem. Um atordoamento, um insuportável desejo de cair. Eu poderia dizer que a vertigem é a embriaguez causada pela nossa própria fraqueza. Temos consciência dessa fraqueza mas não queremos resistir a ela e nos abandonar. Embriagamo-nos com ela, queremos ser mais fracos ainda, queremos desabar em plena rua, à vista de todos, queremos estar no chão, ainda mais baixo que o chão."

O amor frustrado, ferido, muitas vezes nos leva a essa necessidade do abismo; é o orgulho extremado fazendo-se escravo de feridas fundas.

Talvez Friedrich Nietszche tenha traduzido muito bem aquele conceito de VERTIGEM de Kundera em uma das suas frases lapidares: "Quem combate monstruosidades deve cuidar para que não se torne um monstro. E se você olhar longamente para um abismo, o abismo também olha para dentro de você” (in Para Além do Bem e do Mal).

Faço essas reflexões sob o impacto da leitura que RENÉ GIRARD fez das obras, da vida e do pensamento de Fiódor Dostoiévski. Trata-se do livro DOSTOIÉVSKI: DO DUPLO À UNIDADE, da editora É Realizações. Indico essa obra. E faço aqui as suas anotações sobre o orgulho, que bem poderia ser aplicado a Lindemberg como aos que sofreram a frustação no amor e reagiram de um modo "vertiginoso". Cada dia me encanto mais com Dostoiévski.

Quem se fere no amor e tem uma autoestima mal-resolvida, como Lindemberg, termina escravo do seu orgulho ferido e, pior, passa a viver um processo masoquista. O orgulho excessivo do amante frustrado leva ao masoquismo, afinal: "O masoquista não pode encontrar sua própria estima senão por uma vitória escandalosa sobre o ser que o ofendeu; mas esse ser adquire, a seus olhos, dimensões tão fabulosas que lhe parece igualmente o único capaz de obter essa vitória. Há, no masoquismo, uma espécie de miopia existencial que limita a visão do ofendido à pessoa do ofensor. É este quem define não apenas o objetivo do ofendido mas também os instrumentos de sua ação... O ofendido é condenado a errar indefinidamente em torno do ofensor, a reproduzir as condições da ofensa e a fazer-se novamente ofender"(p.41).

E por que o orgulhoso que teve a frustração no amor se deixa cair assim nessa situação masoquista humilhante, vivendo publicamente a sua vertigem? Renè Girard responde com a análise da obra "O Eterno Marido" de Dostoiévski: "Por que ele se precipita assim na humilhação? Porque é imensamente vaidoso e orgulhoso. A resposta é paradoxal apenas na aparência. Quando Trussótzki descobreque sua mulher prefere outro, o choque que sofre é terrível, pois ele se impusera a tarefa de ser o centro e o umbigo do universo... é incapaz de considerar um meio-termo entre dois extremos; o menor fracasso condena-o portanto à servidão... Depois de se ter concebido como um ser de que irradiavam naturalmente a força e o sucesso, ele se vê como um dejeto e daí seguem-se inevitavelmente a impotência e o ridículo". (p.42-43 da obra de Girard).

A vertigem, desenhada por Kundera, revela-se em Dostoiévski de um modo ainda mais vincada: é o orgulho ferido que passa a ser masoquista e humilhado, em um ciclo vicioso e doentio. Tão cioso de si, não soube suportar a desilusão, perdendo-se de si mesmo por perder a autoconfiança e a própria autoestima.

É engraçado - para não dizer trágico! - que pessoas que passam por esse processo, como Lindemberg (aqui, nesse caso, no limite extremo da perda de sentido e na necessidade de destruir o objeto do seu amor), mostram-se orgulhosos, imaginam estar atacando o seu ofensor quando, na verdade, apenas se subjugam mais, mostram-se escravizados pelo orgulho ferido e pela dor. Humilham-se achando estar humilhando; cedem a sua liberdade, proclamando estar livre. Ou seja, passam a viver a patologia de um sentimento frustrado e masoquista.

Todo esse misto de orgulho e humilhação é exposto em uma passagem clássica do livro de Dostoiévski "O Duplo", que sequer está entre as suas obras geniais. O personagem Goliádkin leva esse orgulho ferido ao extremo, àquela vertigem kunderiana, ao abismo nietszcheano, ao dizer: "Quanto a mim, o que tenho feito em minha vida é levar até o fim aquilo que vocês não ousam levar nem até à metade, sempre denominando sua covardia de sabedoria, consolando-se assim com mentiras. Se bem que eu talvez esteja bem mais vivo que vocês".

Para Renè Girard (p.55), essa coisa que Goliádkin LEVA ATÉ O FIM é o orgulho. É essa catarse pública que é a vertigem, levada ao extremo. E o orgulho ferido, digo eu, termina suscitando sempre a autopiedade, essa execração pública de si mesmo, expondo as dores para além do limite do pudor suscitado pelo amor próprio.

Dostoiévski - essa a sua genialidade - nos leva para esses labirintos da psique humana, essas perdas de referências claras causadas pelas frustrações, pelo orgulho inflado e imaturo que não se aceita ferido. E nada há de mais doloroso do que autopiedade do orgulho frustrado, que há de se expor no vazio de si mesmo,na sua falta de capacidade de lidar com o insucesso, com as perdas, com as feridas da vida.

O amor pressupõe o amor próprio íntegro, maduro, equilibrado. A desordem do amor próprio leva ao masoquismo e à humilhação (pior, a humilhação que sequer se reconhece e sabe se vê como tal!). O amor autêntico e maduro é orgulhoso apenas na medida em que preserva o EU para, inteiro, aventurar-se na aventura do OUTRO. O orgulho, afinal, que conta é o orgulho suave que faz sadia a relação EU-TU, sem se perca nunca os termos da relação e a importância dessa polaridade.

quarta-feira, 16 de novembro de 2011

SONHO E REALIDADE: UMA REFLEXÃO AOS 42 ANOS

Nada mais triste do que um sonho que não se permitiu sonhar inteiro. Um sonho nascido e renunciado porque sonhá-lo seria desinstalar as marcações da realidade. E a realidade é o que importa, dizem os historiadores, os jornalistas e profissionais das melhores estirpes. Trabalhar com a realidade dá menos trabalho, porque o real é o barro que se pega com as mãos e se pode dar formas variadas, sempre calculadas, medidas e pesadas.

O mal do sonho é que ele não se deixa domesticar, não pode ser preso em uma fórmulas nem tabulado previamente. O sonho é a erupção do imponderável. E a vida que somos não tolera o imponderável: queremos, por segurança, as coisas que se medem, se contam e se qualificam em rótulos precisos.

Sim, as palavras são rótulos que pomos sobre as coisas, dizem os nominalistas de há muito. Rótulos que não dizem a sua essência, mas bem servem para a comunicação: chamo o objeto sobre a mesa de copo; bem poderia chamá-lo de cobra, sem o risco porém de ser mordido por ele.

Os sonhos não admitem rótulos; não são bons ou maus, feios ou bonitos, certos ou incertos, seguros ou inseguros… São sonhos e nos desafiam por isso!

Lá ia o jovem sonhando em ser músico. A mãe disse-lhe: “Ser músico? Ser artista? Mas isso lá é profissão?!”. Ao rotular a vocação, matou-se um sonho esmagado desde o início. Porque profissão é aquela que tem diploma, que exige estudos e reconhecimento social, pensou a mãe. E ali, naquele momento em que a realidade rotulou o sonho, perdeu-se um Tom Jobim, matou-se um Mozart, eliminou-se um Chico Buarque de Hollanda.

Lá ia o jovem dizendo, aos 28 anos: “Não me realizo sendo juiz de Direito. Quero ser advogado!”. “Louco, você é uma pessoa soberba!”, me disseram uns; “Como pode abdicar da estabilidade?!”, vergastaram outros. Por que será que o sonho incomoda a tantos, me perguntava na angústia de renunciar à magistratura para voltar à advocacia. Ah, os rótulos são cruéis e tentam matar os sonhos!

Sonhar não é fácil. Porque sonhar é revolucionário! Sonhar, afinal, é um passo para além da realidade, é muitas vezes negá-la ou, como dizem os alemães (Hegel, à frente): “aufhaben”. Sim, uma relação dialética de superar conservando algo superado. É dizer, no momento da síntese, o estado antitético é ao mesmo tempo preservado e transcendido, negado e realizado. Sonhar é realizar esse “aufhaben” na realidade mesma, indo além dela sem dela perder-se jamais.

Há quem aprisione os sonhos em rótulos. E as palavras às vezes, com a sua carga emotiva, simplesmente destróem os sonhos. E passamos a ser gerenciados pelo que os outros pensam, dizem, pesam e etiquetam. Ou seja, a realidade passa a ser simplesmente o que de antemão nos deram como o possível, o permitido, o normal. Nada há de mais destrutivo para os sonhos do que a "normalização"da vida. Ora, o bom profissional é o normal; mas o bom profissional nunca alcançará a excelência! Ser bom não é ser ótimo; ser ótimo é ir além da normalidade, do já posto, do já especificado como sendo o "único modo adequado de fazer e agir".

Penso em Einstein. Tivesse ele sido "normalizado" em sua ciência, não poderia ir além de Newton. Haveria de ficar nos limites da física clássica e aí não teríamos a Teoria da Relatividade. Todo sonho que seja digno desse nome tem algo de revolucionário, transgressor, porque sai do círculo de giz que desenharam como sendo o limite do possível.

Sonhar, meus caros, é se apoderar da realidade e superá-la. Sonhar não é negar que há limites, mas saber que eles poderão estar mais além do óbvio, do já posto, do já dito!

Quero sonhar os meus sonhos até o seu limite extremo. Porque viver é risco; sonhar é arriscado demais! Quem sonha não se acomoda à realidade, não se aninha em suas franjas, não se permite emascular de antemão. Quem sonha respira a vida pulsando, mergulha nas suas entranhas, transforma os medos sinais de alerta, apenas para estimular a descoberta da justa medida.

E a justa medida não está predisposta em uma bula de remédio, em uma receita de bolo, em um mapa da vida adrede preparado. A justa medida, afinal, é simplesmente a nossa certeza da finitude, da construção passo a passo, do que é existenciário naquilo que Heidegger soube especificar em uma expressão riquíssima: o ser-aí (Dasein). A nossa finitude, o nosso ser-para-a-morte, a nossa existência com limites passa a ser, então, a nossa grande fronteira e a nossa grande motivação: viver é desde já sonhar e ir além, sem perder de vista as nossas circunstâncias e as nossas limitações. É ir para além de nós em busca da nossa felicidade.

Completo amanhã 42 anos! Olho para a minha vida e me orgulho justamente dos momentos em que me permiti sonhar. Orgulho-me dos momentos em que não me deixei dominar pela realidade, em que percebi que ficar preso a ela me tornaria solvente apenas com a mediocridade! Sim, a realidade é a desculpa dos que se aprisionam ao medo! A realidade é conservadora: ela funciona como uma lei da gravidade irrevogável, nos dizendo sempre: "não dê salto nenhum porque você deverá cair de volta!".

Nesses 42 anos, o que há de melhor em mim brotou dos meus sonhos, muitas vezes inesperados, muitas vezes difíceis, mais da vez provocativos. Sim, porque sonhar não é viver um prazer antecipado; sonhar é construir com as mãos a realidade que se quer viver!

‎"Eu não posso!"; "eu não consigo!"; 'é difícil demais para mim!". Muitas vezes nos deparamos com situações na vida em que a vontade que temos é dizer para nós mesmos: "Não dá!". Entre a realidade e o sonho, abrimos mão de sonhar simplesmente porque abdicamos de tentar. Tentar é já e sempre comprometer-se sinceramente com o sonho, ainda que ele seja tão difícil que não possa ser alcançado.

O alpinista que sonha em escalar o Everest só será feliz se ao menos iniciar a subida até o limite das suas forças. Ele até poderá não chegar ao topo, mas dirá para si mesmo"Eu tentei!; eu lutei!". A maior frustração não é não ter alcançado ou conseguido; a frustração que mutila é a de nem ter tentado, nem ter experimentado o insucesso.

O insucesso faz parte da vida. A dor, o sofrimento, a angústia, enfim, são circunstâncias presentes em nós. Ninguém pode sempre vencer, ter sucesso, estar acima das dores do mundo. A diferença essencial da verdadeira paz, da verdadeira felicidade, está na livre disposição do espírito para TENTAR, para LUTAR. Vencer ou perder é da vida. Muitos sonhos se realizaram plenamente a partir da derrota, da experiência acumulada. O genial Pelé da Copa de 70 só foi possível porque houve o esmagado Pelé da Copa de 66.

Esse é o ponto fundamental: devemos abrir mão da vida e dos sonhos por medo de tentar, de lutar? Do alto dos meus 42 anos, respondo: não! A vida é um dom de Deus caro demais, bonito demais, para que simplesmente nos acovardemos e tenhamos um medo corrosivo que nos freia e domina.

Como disse João Paulo II, citando Cristo: "Non abbiate paura!"