sábado, 28 de maio de 2011

Música do fim de semana: Fernando Mendes

Quando era criança, em Junqueiro, ouvíamos muito músicas em nossa radiola, que ficava em nossa sala de janta. Roberto Carlos, The Fevers, ABBA e tantos outros que faziam sucesso em nosso mundo. Havia um deles, Fernando Mendes, que gostava muito. Uma das músicas que ouvia na infância, não sei uma emoção pela história que contava, era "Cadeira de Rodas" ou "Você não me ensinou a te esquecer". A letra, a melodia, a tristeza da canção, gerava na minha cabecinha infantil uma sincera emoção.

Engraçado como o romantismo brega incomoda a alguns. Preferem as letras densas de certas músicas do Axé Music (tome-se o "reboletion" como exemplo) do que uma desbragada música de amor, com as suas letras simples e histórias sofridas.

Como hoje me veio muito a minha infância em Junqueiro (AL), as praças em que corria e jogava bola, o Grupo Escolar Pe. Aurélio Góes, não poderia deixar de relembrar, então, as músicas da minha infância, ouvindo com vocês Fernando Mendes.


O menino, o velho e o caminho escuro

A casa tinha um quintal grande. No fim dele, dando para a rua que passava por trás dela, havia a garagem e um quarto, que servia para guardar as coisas velhas, de pouco uso. À noite dormia lá um velho já falecido, que tinha uma vasta barba branca, portava chapéu e bengala torta, além de carregar consigo um saco sujo, cheio de "sabe-se lá o quê". Ao menos era essa a informação que o meu irmão Ricardo me passava, fazendo-me medo da alma penada que andava pelas bandas do Junqueiro da minha infância.

Certa noite, faltou energia elétrica. A noite havia fustigado as estrelas, que tímidas deixaram a escuridão expropriar até a luz da lua. Não dava para ver um palmo além do nariz. As velas crepitavam as suas chamas, que mantinham-se vivas a muito custo, protegidas pela palma da mão, que impedia o vento de arrebatá-las.

Mamãe nos chamou: Cadinho (Ricardo), Serginho e eu. Estávamos brincando na sala, quando veio o apagão. Cadinho e nosso amigo Serginho tinham praticamente a mesma idade e adoravam botar medo em mim, que era muito valente para os seis anos mal completados. Fomos e recebemos o pedido para irmos ao quartinho lá de trás pegar um candeeiro para a mamãe. Os três nos entreolhamos e pensamos no tal velho da barba branca. Nos borramos de medo.

A mamãe nos estimulou a ir pegar o candeeiro, dizendo que não existia velho algum, que aquilo era uma bobagem, coisa da nossa imaginação. Fôssemos sem medo que Papai do Céu nos protegeria com os seus anjos. Diante do pedido dela, aceitei a empreitada. Porém, nem o Cado nem o Serginho encararam a aventura. Pior: desafiaram-me a ir sozinho. Cheio de medo, mas premido pelo pedido da mamãe, fiquei na dúvida, até que o Cado fez uma aposta, prometendo-me um Cr$ 1,00 (um cruzeiro) para ir ao quartinho. Topei.

A mamãe acendeu uma vela e me entregou. Iniciei os primeiros passos pelo quintal. Tudo escuro. O fogo sendo mantido com muito custo acesso, com as palmas da mão no entorno da vela, quase queimando para evitar que o vento a apagasse. Fui avançando, vencendo o quintal, até que uma rajada de vento silenciou o fogo. E o véu da noite me engoliu por completo. Estava a meio caminho. Olhei para trás, trêmulo. Não via nada, só a voz do Cadinho dizendo que o velho ia me pegar, mesmo com o reproche da mamãe, mandando-o parar de me amedrontar.

Meu corpo parecia ter ganhado autonomia. A tremedeira autonomizou-se. Resoluto, continuei andando, sem enchergar nada. Procurei ir em linha reta, supondo que mantinha-me alinhado com o traçado inicial. Aos poucos, alcancei o alpendre do quartinho. Estava entrando em território perigoso. Balbuciei algumas palavras sem nexo, buscando alguma diatribe do velho, algum sinal de o estar incomodando. Nada.

Dei mais um passo. Um passo a mais. É sempre o passo que faz o caminho. E tropecei em alguma coisa, que me fez cair. Seria o pé do velho?, pensei. Não ouvi reclamação, contudo. Ouvi a mamãe perguntar se estava bem. Respondi que sim, quase com as calças sujas, tal o medo que me assomava. Levantei-me. Segui tateando o lugar, sem nada mais ver. Tateei, tateei e sai encontrando coisas no chão do quartinho, torcendo para não trombar com o velho.

Fiquei falando alto, para a mamãe me ouvir e orientar, ao mesmo tempo que poderia estar intimidando qualquer destempero do velho contra mim. Ela ficou me orientando sobre onde poderia estar o candeeiro e terminei o encontrando. Peguei-o como a um troféu.

Iniciei o caminho de volta, buscando a saída do quartinho. Meu coração batia descompassado. Sabia que aqueles momentos eram decisivos. Ao encontrar a porta, sai na banguela, desatando uma carreira sem igual. O peito explodia. Já não sentia as pernas na corrida, como se voasse. E cheguei na casa, atravessando o quintal em uma velocidade que nunca mais repetiria. Fui saudado pelo meu irmão e pelo Serginho. Recebi o beijo da mamãe e entreguei-lhe o candeeiro.

Fui grato ao velho. Poderia ele ser o papafigo, levando-me lá de casa para sempre. Mas julguei que ele teve medo da minha iniciativa. Sei lá. Só sei que ele me deixou entrar no quartinho e pegar o candeeiro. Eu sei que você pode estar pensando que não havia coisa nenhuma de alma penada de velho no quartinho. É possível. Mas de uma coisa eu sei: no dia seguinte eu estive lá, com a luz do dia, e tive a sensação de que alguém havia dormido ali... Afinal, a mente infantil nos permite ver outras realidades!

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Na vida, é sempre um passo que falta. Por medo, muitas vezes deixamos de trilhar o caminho, pensando em toda a sua extensão. Se dermos um passo de cada vez, será esse gesto que nos impulsionará e poderá nos fazer ir bem mais longe do que pensaríamos ser capazes. Por isso, a sabedoria popular diz que o caminhante faz o caminho. Afinal, como diria Exupèry, em seu livro Voo Noturno, "é só um passo que falta, mas um passo...".